Cuida

O milagre que eu vi hoje 

Por Carol Sarmento

Frequentemente, ouço frases como “Eu espero um milagre, eu creio que vai acontecer”, ou “Meu pai será curado, você vai ver” dito à beira de um paciente literalmente morrendo, ou ainda “Eu acredito. Você não acredita, doutora?” diante de situações onde o humano, o técnico, o científico e o possível já se esgotou. 

E cada vez que ouço isso, me doi. Não porque eu não tenha fé, ou eu seja pouco empática às cenas descritas, ou cética em relação ao sobrenatural. Não. Me doi porque enxergo expectativas superestimadas, muitas vezes por conta de comunicações ineficientes da equipe médica, falhas em compartilhar prognóstico e desfechos esperados, dores grandes e não acolhidas em quem está ali presente nessas cenas. Doi. 

Também ocorre que a expectativa de milagre sempre é demonstrada como se fosse da ordem do grandioso: é milagre fazer a doença sumir (“Meu pastor disse que só preciso acreditar, a cura já veio” – se diz da pessoa acamada e sem nem conseguir abrir os olhos), o exame vir limpinho das metástases (“Eu sei que a quimio não funcionou, mas sinto dentro de mim que não tenho mais nada, você vai ver!”), a reversão de órgãos não funcionantes acometidos por doença incurável somente pelo fato de estar na UTI (“Já me disseram que o fígado parou porque a doença cresceu, mas em nome do Altíssimo essa diálise vai ajudar e ele vai ficar bom!”). Sim, essas são frases que ouço diariamente. 

O que venho propor aqui é um exercício de ajuste de expectativa pelo milagre – simplesmente porque eu acredito que, sim, o extraordinário pode acontecer.  E ele é extraordinário como o próprio nome diz, porque acontece por fora do estabelecido, além do que é esperado – e sem depender necessariamente do talento profissional do médico, da intervenção humana e da capacidade técnica de quem cuida. Ele vem em eventos mais simples e menos inflacionados, digamos. Perceba: ele é possível estatisticamente porque a distribuição dos eventos e desfechos em saúde é gaussiana, com eventos extremos menos frequentes à medida que tão mais longe esteja da meiuca da curva. 

Quer ver? Hoje teve alta de um paciente que, pra mim, devia mudar de nome para Fênix – e é assim que vou chamá-lo. Alguém que já teve internações onde todos nós que cuidamos achamos que não seria possível ir para casa – ele inclusive. Com pioras e descompensações críticas nos últimos meses. Entretanto: Fênix está indo para casa, com seu desempenho de status prejudicado, mas andando, comendo, confortável e passando bem. Quem diria. 

Como chamar isso? Milagre, digo eu. A doença segue lá, maior, inclusive. Não sumiu, não remitiu, não cedeu. Mas ir para casa em um cenário assim, vai dizer que não é milagre? 

Pois bem, digo que é. Da mesma forma que é comer uma comidinha feita com amor, mesmo que poucas colheradas, quando a chama da vela da vida está apagando. E digo que é também quando a gente vê mais dias vividos perto dos seus amores, mesmo sabendo que a estimativa é da ordem de poucos, muito poucos. Quando vemos conforto, dor controlada, serenidade e calma no derradeiro: pode também ser milagre. 

Convido você, especialmente se for profissional da saúde, a calibrar sua percepção para buscar ver o extraordinário nos nossos dias, na lida. Ele acontece, te garanto – Gauss mesmo já provou isso antes! Seja alguém que aprecie os milagres: os pequenos, diários e não menos surpreendentes.

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