Por Giovanna Zanatta
A vida toda ouvi: gatos vivem 14 anos. Fiquei com esse dogma internalizado. Então, quando minhas duas gatas, que peguei na rua ainda bebês e que me acompanham desde que eu fazia faculdade em Porto Alegre, começaram a chegar perto dos 13 anos, eu já comecei a viver um luto antecipatório, imaginando que nosso tempo juntas estivesse próximo ao fim.
Felizmente essa previsão não se concretizou e, quando fizeram 14 anos, comecei a considerar cada tempo a mais a partir desse momento como uma prorrogação que me foi dada de presente, de quem está fazendo hora extra e, como tudo a partir daquele instante era considerado bônus, que eu aproveitasse ainda mais, sabendo que não posso prever quanto tempo mais teremos.
Me preparei para o luto da perda mas não me preparei para o envelhecimento. O curioso é que não estamos acostumados a ver o envelhecer dos animais. Já tive outros gatos que partiram em idade bem mais jovem e eu não acompanhei o processo da vida ficando mais frágil, mais lenta e com mais limitações. Agora, vendo de perto a senilidade se manifestar, percebo que, na minha ilusão, os bichos ficariam sempre jovens e ativos até o dia em que simplesmente eu os encontraria repentinamente dormindo um sono eterno.
Mas não. Vi os pelos das gatas ficando brancos em locais que antes eram marrom. Andam com as pernas arqueadas e perderam a musculatura do quadril. Ficam mais quietinhas. Sentem mais frio. Não conseguem mais pular em lugares altos. Se perdem pela casa e miam desesperadas porque subitamente se encontram sozinhas. Dormem mais de dia e me acordam várias vezes de madrugada para pedir água na pia mesmo com inúmeras fontes de água espalhadas pela casa. Comem menos e a comida precisa ser mais macia para conseguirem mastigar. Sempre foram educadas fazendo as necessidades só na caixa de areia, mas hoje volta e meia encontro sinais pela casa de que não deu tempo de chegar na caixinha.
Ao mesmo tempo em que precisam mais de ajuda – e tive que aprender a cuidar delas nessa fase de vulnerabilidade maior – ficaram mais companheiras. São duas senhorinhas com frio que preferem ficar quietinhas do meu lado no sofá dormindo numa coberta enquanto eu leio do que fazendo estripulias pela casa. Antes o carinho que eu fazia, que era mais vigoroso, agora é mais delicado para não machucar. Eu mesma passei a dormir mais cedo, e elas vêm na mesma hora para o quarto para se esquentarem com o calor do meu corpo embaixo do edredom. Querem mais companhia. Querem paz. Assim como eu, afinal temos envelhecido juntas nesses anos.
Nessa fase de maior dependência, me sinto privilegiada por oferecer cuidado com tanto amor. E acho que elas percebem que, mesmo tendo passado a infância na rua, foram resgatadas a tempo a ponto de poderem sossegar na velhice com uma cama quentinha, comida disponível e afeto desmedido dedicado a elas. Elas me acompanharam em 2 mudanças de cidade, mais de 8 mudanças de apartamento, inúmeros momentos difíceis sem sair do meu lado, que o mínimo que posso oferecer de minha parte nessa hora é reciprocidade – estar com elas com o mesmo companheirismo e parceria que foram dedicados a mim por tanto tempo.
Minha melhor amiga começou a conviver mais de perto com as gatas há pouco tempo. E de vez em quando mostra-se ressentida por não ter acompanhado a trajetória delas nem ter aproveitado mais tempo desse amor tão puro que só um bichinho pode proporcionar. Cuidar de bicho idoso nos relembra que a maior parte do tempo de convivência já passou, e isso gera uma tristeza pois a finitude está sempre à espreita.
Assim como cada ser humano é diferente um do outro, com suas características únicas e personalidade peculiar, com os bichos não é diferente – o amor que construímos com eles é singular. E amor é construção. Dia após dia. Ele se transforma ao longo do tempo. Dura uma vida toda e para além dela. Às vezes me pego fazendo algo e elas olhando para mim e o que ecoa nesse silêncio é “quantas coisas já vivemos juntas, né?”
Hoje escrevo esse texto com as duas dormindo ao meu lado – uma com 17 anos e a outra com 16. Muito além do que eu imaginava. Não sei quanto tempo ainda temos juntas, mas vê-las envelhecer tem sido um privilégio: significa que tivemos muitos momentos para criar memórias e que posso dar, neste momento de fragilidade, todo o amor e afeto que recebi em muitos períodos em que quem esteve frágil era eu. Enquanto as cubro com a manta, penso que gostaria que a vida delas durasse o mesmo tempo que a minha, para eu não sofrer a dor da perda. Mas deixo meu egoísmo de lado e simplesmente ofereço meu colo para descansarem num lugar seguro enquanto ainda estiverem por aqui.