Cuida

Nenhum de nós tem tempo a perder

Por Alyssa Miranda

Prazer, sou Alyssa. Geralmente escrevo relatando como convivo diariamente com o sofrimento. Com esse texto não seria diferente, já que, sendo oncologista, lido com a dor de um diagnóstico que ameaça a vida e, diante deste, o seu fim. Hoje, pensativa, me questiono: considerando que o luto é a dor por perder algo ou alguém, será que o nascimento é, de certa forma um luto? É doloroso. É solidão. A mãe se perde na identidade. Se perde do pai, que também se perde de si. Em contrapartida, é recompensador como todos crescem em meio à essa perda.

A vida é uma rotina de escolhas e perdas. Sofrimentos e frustrações. Aprender a lidar com todos esses sentimentos é primário para o amadurecimento psicológico. O diagnóstico de uma doença que ameaça a vida e muda o seu fluxo é, muito antes da morte, um luto. Tanto para quem adoece quanto para quem lida com o adoecimento do outro. No entanto, assim como no nascimento, é no enfrentamento do luto que se cresce.

Entender o luto como um processo dinâmico de lidar com perdas é primordial. A dor é uma jornada única e, portanto, enfrentada de maneiras diferentes por cada indivíduo. O caminho percorrido é influenciado por diversos fatores como cultura, religião, personalidade, e desta forma transcende a tristeza, abrangendo uma ampla gama de sentimentos como negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Eu poderia dizer que o luto é uma experiência natural, multifacetada, emocional e inevitável diante da perda de algo significativo.

Conheci o Sr. “A” não faz muito tempo. Homem educado. Diagnosticou, aos 46 anos, um colangiocarcinoma. Ele é daqueles que entende detalhadamente sua doença e conhece todos os mais novos tratamentos lançados na atualidade. Entende sobre eficácia e efeitos colaterais deles, assim como sobre o prognóstico da doença. Nosso primeiro contato foi frio. Estávamos iniciando uma segunda linha de quimioterapia devido a uma progressão de doença hepática. Já haviam me falado que eu apenas acompanharia o tratamento de um paciente “bastante exigente”, mas que o seguimento oncológico e as definições quanto ao tratamento seriam feitos por outro oncologista. Ele estava ali apenas porque havia perdido o convênio que esse oncologista atendia.

No nosso segundo encontro já criamos um vínculo. Foram feitos apenas 2 ciclos da quimioterapia e a doença não deu tempo de fazer os seguintes. Logo a função hepática piorou, o rim começou a falhar, ele entrou em um quadro de sepse, internou e foi a óbito em aproximadamente 15 dias. Enquanto esteve internado, fui visitá-lo algumas vezes. Ficava feliz em me ver. Sempre respondia o meu bom dia com a frase: “Melhor agora”. Conversamos muito sobre o fim da vida. Embora ele nunca me deixasse acessar o luto e sempre permanecesse no lugar da esperança, eu sabia que ele entendia que o fim estava chegando. A esposa contou que eles são espíritas e que a espiritualidade era muito importante para ele nesse momento. Eles tinham um embrião congelado. A primeira fertilização “in vitro” não deu certo. Antes que pudessem tentar de novo ele, adoeceu. Antes de falecer, ele pediu a ela que fosse mãe.

Sempre escuto das pessoas que “fulano perdeu a luta contra o câncer” e sempre me questiono o que foi perdido. Uma vez que morrendo todos estamos, o que seria perder para o câncer? Ou não morrer é uma opção para alguém? Falar de luto e perdas me remete ao meu mais profundo medo de perder. Perder o tempo. Perder o importante. O instante do sorriso real. O abraço de cuidado. O olhar sincero. As primeiras palavras. Dedicar os segundos buscando o perfeito, ou melhor, o que parece perfeito, porém é fútil. Acelerar as horas e perder o cheiro bom de um café tranquilo. Trabalhar tanto e perder um nascer ou um pôr do sol. Guardar dinheiro e não viver o agora. Acordar na segunda e querer a sexta, e perder um infinito de possibilidades. Perder um encontro. Desencontrar pelo acelerar dos passos. Me perder.

O tempo é cruel. Ele passa acelerado, constante, e quem o perde nunca mais o tem de volta. Perder tempo é um luto porque quando se dá conta a vida está diferente e nada mais se reconhece. Conheço pessoas “saudáveis” que estão vivas achando que venceram algo e, se perderam no tempo. O medo de perder a vida faz com que as pessoas entendam, enfim, que estão vivas. Ressignificar o tempo uma vez que temos a falsa impressão de encurtá-lo. Na verdade, o medo de morrer faz com que as pessoas doentes encontrem o real significado de viver.

Desta forma, entendi que o fim é uma certeza para todos. Jovens. Velhos. Doentes ou saudáveis. O que importa é como você constrói o percurso. Importa o que você faz deste tempo existente entre o nascer e o morrer, que chamamos de viver. Nenhum de nós tem tempo a perder. Estar presente na própria vida é fazer valer o tempo.

Lidar com pessoas doentes ressignifica a minha vida porque é no sofrimento que elas se reconhecem fortes, me levando a crer que o luto possui sempre um elemento de ganho, sendo, portanto, o preço que se paga por amar demais. Como diria Eduardo Galeano: “mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce”.

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