Por Eugênio Donadia
De cara, vou logo dizendo: neste texto também falo de mim.
“Eu dizia para mim mesmo ‘nunca vou contar para ninguém. Só quando conseguir ganhar meu dinheiro, não depender mais dos meus pais e estiver morando bem longe é que vou me assumir’” (I. 24 anos, gay). “O Deus pra quem rezo é o Deus que me odeia” (H. 22 anos, lésbica, evangélica). “Eu tenho medo, sabe? De alguém me machucar, acontece todo dia” (B, 20 anos, mulher trans).
Essas declarações foram feitas por pacientes LGBTQIAP+ que chegaram ao meu consultório nos últimos 2 anos. Pacientes que se sentaram no meu sofá com algum sintoma depressivo ou ansioso, angustiados com a própria existência pelo – nada simples – fato de serem quem são.
Os olhos marejados, a vergonha, a raiva dirigida a si e a quem está à sua volta, entre outros tantos indícios de uma vida em sofrimento, são reflexos da falta de acolhimento e compreensão experienciados nos meios familiar, religioso e social.
Confesso que algumas dessas angústias eu mesmo, que faço parte dessa bandeira, já senti na pele. Não é fácil tendo o apoio de uma família dita estruturada e disponível, como a minha, quiçá nas menos ou quase nada preparadas para acolher esse sofrimento.
Estamos falando de uma angústia que tem raízes profundas na sociedade em que vivemos. Um mundo machista, sexista, racista, fóbico em todos os aspectos possíveis, que sofre e faz sofrer aqueles que não se enquadram nos padrões que uma maioria determinou como certos. Aprendemos, desde o útero, que meninos usam azul e meninas usam rosa, que o amor é heterossexual, que negro é bandido, que ser gordo é feio, que Deus ama quem anda na linha – branca, cisgênero e elitizada. O que sai desse roteiro é, então, demonizado e deixa uma pergunta no ar: que lugar de afeto sobra para essas pessoas ocuparem?
É com toda essa sombra que a pessoa LGBTQIAP+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans/Travestis, Queer, Intersexo, Assexual, Pansexual e outres) acaba convivendo, vivendo e sobrevivendo. O medo desde cedo marca presença junto a um punhado de vergonha e uma imensa sensação de não pertencimento. Ou de pertencimento apenas naquele grupo ao qual, teoricamente, não deveria pertencer: a menina que anda toda “machinho”, o menino que brinca de Barbie e por aí vai.
Aqui eu abro um parêntese: quer ver um sofrimento, que pode parecer pequeno, mas que marcou toda minha vida? A aula de educação física. Nunca fui bom em “coisas de menino”, sempre andei no grupo das meninas, nunca me interessei por carrinhos, mas amava o Melocoton, a Xuxa e a Fada Bela. E, convenhamos, eu não devo ter sido o único… fecho parêntese.
Se descobrir LGBTQIAP+ é passar, obrigatoriamente, por uma ansiedade que uma pessoa heterossexual cisgênero não conseguirá entender. E, se somado a isso, tivermos a vivência de outros impactos por aquela pessoa pertencer a outras “ditas” minorias (ser mulher, negro, gordo, de religião de matriz africana, etc.), novos estigmas e preconceitos podem temperar de maneira bem amarga essa existência.
Hoje, o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Para se ter uma ideia, no biênio de 2020 a 2022, o aumento de mortes com teor LGBTfóbico no país foi de, pelo menos, 33,3%. Isso sem contar os casos não notificados.
Portanto, o medo de ser quem é resulta em uma população vulnerável, com dificuldades para se relacionar, temerosa em expressar sentimentos, exausta de tentar ser aceita, muitas vezes intolerante consigo mesma e autodepreciativa. Para piorar ainda mais esse quadro, essas pessoas também não encontram à sua volta o cuidado profissional e as políticas públicas adequadas e acolhedoras, e acabam se afastando e adoecendo de forma solitária. O resultado dessa mistura é o aumento comprovado de casos de pessoas LGBTQIAP+ sofrendo de depressão, de ansiedade, de outros transtornos psiquiátricos, do abuso de álcool e de outras drogas (lícitas e ilícitas), da ideação e das tentativas de suicídio.
Ou seja: a verdade é que ser LGBTQIAP+ é fazer parte do grupo de risco para suicídio!
A revista científica Pediatrics, segundo reportagem do site Metrópolis, concluiu que 62,5% das pessoas LGBTQIAP+, que participaram de sua pesquisa, já pensaram em suicídio e têm 6 vezes mais chance de tirar a própria vida quando comparadas aos heterossexuais cis. O psiquiatra Bruno Branquinho, em seu blog para a Carta Capital, afirma que jovens LGBTQIAP+ pensam 3 vezes mais em suicídio que jovens cis heterossexuais. Um outro estudo, em texto publicado pelo CRP 15 (Conselho Regional de Psicologia / AL), aponta que adolescentes que vivem e estudam em locais que acolhem melhor a comunidade LGBTQIAP+ têm 25% menos probabilidade de cometer suicídio.
As pesquisas são diversas e os resultados convergem para o mesmo ponto: nós precisamos que cuidem da gente, nós precisamos que a sociedade acolha nossas demandas com urgência. E para isso, reforço, são necessárias políticas públicas adequadas e educação constante, com representantes políticos que atendam nossas demandas, escutem nossa voz e criminalizem com seriedade qualquer tipo de violência contra nossa existência. Precisamos acolher e falar desse sofrimento, dar oportunidade para que a marginalização não mate (ainda mais) essas existências.
Para concluir essa conversa, compartilho com vocês um dado interessante: ao mesmo tempo que é o país que mais mata pessoas trans, o Brasil também é o país que mais consome pornografia com transexuais. Os mesmos versículos da Bíblia que condenam a homossexualidade, também mandam para o inferno quem come carne de porco, que é a mais consumida no mundo… Que ironia!
Se você quiser se aprofundar nesse assunto, ou conhecer melhor os dados citados nesse texto:
Para assistir:
Direito de amar (A Single Man – EUA -2009), disponível na HBO Max.
Os rapazes da banda (The Boys in the Band), disponível na Netflix.
Trevor (Trevor – EUA – 1994) – curta metragem ganhador do Oscar de Melhor Curta em 1994. Os idealizadores deste filme criaram o The Trevor Project, uma organização de prevenção ao suicídio que ajuda jovens lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros (LGBTQ).
Polarised (Polarised – Reino Unido – 2015), curta metragem precioso sobre a saúde mental da comunidade LGBTQ+
Para ler:
Orações para Bobby – Leroy Aarons, da Hoo Editora.
Gays and Mental Health: Fighting Depression, Saying No to Suicide – Jaime A. Seba, Ebook.
Para ouvir:
Podcast Fora do Meio – Ep. 059 – Saúde mental Lésbica
Ep. 060 – Saúde Mental LGBTQIA+.
Podcast DixTrava
Ep. 03 – Setembro Amarelo e a comunidade LGBTQ