Cuida

Cuidado Paliativo é muito mais do que você imagina

Por Danielle Barros

Assim como em outros campos da medicina, o conceito de cuidados paliativos foi se transformando ao longo das últimas décadas. Por mais que se entenda de onde vem a ideia de que cuidados paliativos é igual a morte, ou que só é oferecido no fim da vida, eu preciso te contar que, hoje em dia, essa é uma ideia não só ultrapassada, mas completamente equivocada. Antes de te contar o porquê, comecemos pelo início. 

O primeiro conceito de cuidados paliativos da OMS data de 1990 e define que é um cuidado oferecido para pacientes com câncer incurável. Naquela época, o tempo de sobrevida era frequentemente tido como a única medida de sucesso dos tratamentos oncológicos. Nenhum outro aspecto relacionado a sintomas ou qualidade de vida era avaliado nos estudos. Os tratamentos, que eram bem menos eficazes no controle do câncer, apenas aumentavam o tempo de vida em alguns meses. Tudo era feito às custas de efeitos colaterais, oferecendo àqueles pacientes pouca capacidade de aproveitar seus últimos meses de vida repletos de dores descontroladas, desesperança e isolamento social. 

Compreendeu-se que os problemas relacionados ao final da vida têm sua origem em um momento anterior na trajetória da doença. Sintomas não tratados no início da doença se tornam mais difíceis de manejar no fim da vida. Entendeu-se que além de não ser normal, ninguém se acostuma a viver com a(s) dor(es) de um câncer, por exemplo.

Assim, desde 2002, a OMS reconhece que os princípios de cuidados paliativos devem ser oferecidos o mais cedo possível ao se identificar qualquer doença grave que ameaça a continuidade da vida. E, desde 2014, a definição completa é a seguinte: cuidados paliativos são uma abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes (adultos e crianças), e de seus familiares, que enfrentam problemas associados a doenças que ameaçam a vida. Previnem e aliviam sofrimento por meio da investigação precoce, avaliação correta, tratamento da dor e de outros problemas físicos, psicossociais e espirituais. 

Ou seja, há mais de 20 anos não existe mais “entrar em cuidados paliativos”, ou “paliativar” alguém. O que existem são doenças cujos tratamentos, tipo cirurgias, transplantes, quimioterapias entre outros, podem ter intuito de cura ou não. Todo e qualquer tratamento que não tenha objetivo de curar uma doença é um tratamento paliativo. 

E, ainda nesse grupo de pacientes em tratamento paliativo, muitos ainda têm preconceito e medo ao serem encaminhados para equipes de cuidados paliativos. Comumente quando explico o intuito da abordagem a fala é um “ufa, achei que já estava nos paliativos”. 

Minha vivência me diz que a maioria ou não aceitou, ou não entendeu o objetivo dos tratamentos a que eles próprios estão sendo submetidos com seus médicos de origem.

O foco da abordagem é o sofrimento. E este ninguém escolhe quando começa. Pode começar assim que se recebe um diagnóstico de uma doença grave, mesmo que seja uma doença com possibilidade de cura. Ao imaginar ser portador de uma doença que ameaça a vida, materializa-se nossa finitude. E mesmo que a morte não seja temida, a possibilidade ou a realidade de viver grandes mudanças que não estavam previstas, ou que eram antes inimagináveis, pode ser fonte inesgotável de um sofrimento que pode perdurar pelo resto da vida, apesar da doença. É esse o tipo de atenção a que se prezam os cuidados paliativos. É também para tratar e prevenir sintomas que sabemos acontecer ao longo da trajetória de uma doença. É entender que, quando uma pessoa fica doente, a família também adoece e carece de atenção e cuidados. É reconhecer que todos têm um papel, uma função no mundo, e que uma doença pode ameaçar a continuidade dos nossos sonhos. Seria prepotência dizer que bastasse identificar o sofrimento que logo resolveríamos todos. Mas é de uma ignorância desumana menosprezar as dores que atravessam alguém com uma doença grave. Sofrimento não identificado perde oportunidade de ser aliviado. Há de se procurar, investigar, vasculhar por ele, porque ele pode estar ali. Desamparado. 

A maioria das pessoas com câncer agrupam, em média, 11 sintomas por paciente, o que denota um possível efeito cascata no qual um sintoma descontrolado pode impactar intensamente na qualidade de vida. Quanto mais complexa a doença, mais complexo o cuidado. Seria também inocente e leviano dizer que um médico sozinho consegue abarcar todas as dimensões do sofrimento. É por isso que existe a necessidade de uma abordagem multidisciplinar.

Qualquer profissional de saúde, ao iniciar o acompanhamento de um paciente com doença grave, deveria ter um atendimento também voltado para a pessoa por trás da doença. Se as demandas se tornam mais complexas, o paciente deve ser encaminhado para uma equipe especializada em cuidados paliativos para acompanhamento conjunto enquanto for necessário. Se alguém pensa que ainda não é a hora de ter acompanhamento por equipe de cuidados paliativos, te digo que bem possivelmente já passou da hora. Não há uma linha que divida não necessidade x necessidade de cuidados paliativos. O que se espera é que consigamos agregar ao tratamento uma camada a mais de cuidado. E mesmo que não existam mais tratamentos capazes de controlar a evolução de uma doença, sempre tem o que fazer. Enquanto há vida, há cuidado. A ideia é cuidar mais; cuidar melhor. 

Precisei falar de tudo isso, porque já é comprovado que cuidados paliativos melhoram a qualidade de vida, aumentam discussões sobre cuidados no fim da vida, reduzem o uso de tratamentos agressivos próximos do fim da vida, aumentam sobrevida, diminuem as internações desnecessárias e por consequência o uso do sistema de saúde reduzindo custos. 

Com o envelhecimento populacional, aumenta-se a prevalência de doenças crônicas não transmissíveis como as cardiovasculares, o câncer, as respiratórias e o diabetes. No Brasil, elas são a maior causa de morte, vitimando cerca de 700.000 pessoas ao ano. Estima-se que essa população necessitada de cuidados paliativos aumentará significativamente no futuro, no entanto, ainda estamos bem longe de ter uma assistência adequada às necessidades atuais. Isso pode significar milhares de pessoas vivendo os últimos anos ou meses das suas vidas com sofrimento possivelmente não identificado; mais sobrevivendo do que vivendo. Como diz a médica paliativista Ana Claudia Quintana Arantes, “as doenças se repetem nas pessoas, mas o sofrimento não. O sofrimento é único, cada um tem o seu.” E só se vive uma vez.

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