Cuida

Com carinho, aos meus colegas de profissão

Por Carol Sarmento

Outubro de 2023 – A propaganda no rádio diz: “seja um dos grandes nomes da medicina brasileira. Venha estudar na faculdade TAL”. Tive um estalo na hora. Não deve vender curso de medicina e anunciar assim: “seja um trabalhador em prol das pessoas, faça medicina conosco”, ou “aprenda a ter uma vida de serviço com empatia e compaixão, de comunicação simples e acessível. Estude com a gente!”. Seriam anúncios bem honestos, porém certamente nada chamativos. Afinal, quem quer ser “doutor” e ser um indivíduo a serviço? Não sei você, mas eu quero. E muito.

Outubro de 2021 – A pandemia estava bombando. Acordei no dia 18 de outubro daquele ano no plantão da UTI COVID. Vi um técnico de enfermagem, que admiro um tanto, passando plantão e, cuidadosamente, se despedindo dos pacientes que estavam sob sua atenção. Pensei: esse moço entendeu o que é cuidar! E deve ser muito provável que os pacientes se lembrem dele e da qualidade do seu cuidado e nem sequer se lembrem de mim, do meu nome, do que fiz por eles. Não só de mim, mas de qualquer outro médico que por ali tenha passado.

Cheguei em outro hospital e recebi um recado de uma amiga, dizendo que tinha um bem-casado que a família de outro paciente deixou para mim. Rolou uma celebração especial no final da semana com família, padre, música, benção pelos 60 anos de união e teve doce e bem-casado. E eu fiquei emocionada em poder ter feito parte, mesmo que pequena, daquela história. 

Naquele dia passei um bom tempo pensando no que é a medicina atual. Ela, a própria: polarizada, muitas vezes enviesada de uma autonomia torpe, pouco focada em conforto, moderna e desumanizada até. Me dei um tempo de respiro na beira da praia perto do hospital e notei uma placa na qual estava escrito “coco JELADO”.

Naquele dia 18 de outubro de 2021 conclui, depois de quase meio dia pensando, que a boa medicina deve ser crescimento, modernidade, desenvolvimento, quebra de paradigmas. Mas também tem que ser doce, enxergando os elementos que importam e capaz de fazer cuidado centrado no paciente, como um bem-casado. Deve dar um abraço no corpo e na alma de quem é o objeto do cuidado da gente, que nem o meu colega lá no plantão! Tem que ser humana. E tem que ser acessível, simples; ser capaz de trazer alívio para as dores, dissabores e sofrimentos, exatamente como um bom coco JELADO.

18 de outubro de 2016 – Londres. No sótão vizinho à Igreja de São Tomás, bem na área central da metrópole, existe uma antiga sala de operações. Espaço escondido, de dificílimo acesso, tanto mais em tempos passados. Eram tantas escadas estreitinhas para o paciente chegar, até de maca… Era onde ia quem não tinha dinheiro para receber tratamento cirúrgico em épocas pré-anestesia. Bem no alto da parede, há uma frase escrita em latim “MISERATIONE NON MERCEDE”. Para a gente, em bom português: “compaixão, não ganho”.

Há exatos 9 anos fiz uma foto nesse local: uma sala de cirurgia da primeira metade do século XIX, berço de parte da medicina moderna. Lugar onde se falou que lavagem de mãos fazia menos gente morrer de infecção em pós-operatório, de médicos cuja fama era proporcional à sujeira do jaleco, em tempos de zero antibióticos. Parece até bizarro, mas tudo isso estava bem ali, há menos de 200 anos de mim.

Bela coincidência, no dia do médico, conhecer um pedacinho do passado. E em todo dia do médico, desde então, eu revisito essa foto, as memórias daquele local, o que ele me evoca e o que eu escrevi naqueles dias.

Meu passeio por esses 9 anos e esse texto em 2023 são para desejar feliz dia aos que entenderam que essa tal profissão, chamada medicina, implica ouvir, treinar, rever conceitos, atualizar, andar pra frente sempre aprendendo do passado. Que entenderam também que ela não te faz melhor que ninguém; ela te faz ser melhor pra si mesmo, SE e SOMENTE SE você entender que a essência de ser médico é SERVIR AO PRÓXIMO e CUIDAR DE GENTE. Com amor pelo que faz, bem muitão. Simples assim. Por compaixão, não por ganho. MISERATIONE NON MERCEDE.

Um salve aos diletos coleguinhas.

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