Cuida

Por que não falamos sobre sífilis?

Por Ana Carolina D’Ettores

Já reparou que existe um cerco de silêncio ao redor do tema sífilis? Uma doença que, por muitos anos, pode ficar escondida, mas que se não tratada adequadamente pode levar a lesões graves e irreversíveis. Mas por que tanto silêncio sobre uma doença milenar? Será devido ao fato de ser transmitida majoritariamente por via sexual e isto estar relacionado a pecado divino, ou por ter um passado sombrio de violação de direitos humanos por parte de autoridades sanitárias?

A sífilis remonta à Idade Média, tempo em que não se conheciam os conceitos de doenças infecciosas, mas que já se sabia que a principal forma de transmissão era por via sexual. Acreditava-se que ela surgiu como castigo divino àqueles que levavam uma vida libidinosa. Ainda, era considerada um castigo hereditário, uma vez que os filhos daqueles acometidos pela doença nasciam com malformações congênitas. 

O agente etiológico, a bactéria chamada Treponema pallidum, foi descoberto em 1905 e tem, até os dias de hoje, o tratamento padrão-ouro descoberto no início dos anos 1940. Com o surgimento de uma medicação eficaz, gerou-se a expectativa de que a infecção seria finalmente extinta, o que, infelizmente, não se confirmou.

Segundo o Ministério da Saúde, no período de janeiro a junho de 2022, no Brasil, registrou-se um total de 122 mil novos casos de sífilis. Nesse período, foram identificados 79,5 mil casos de sífilis adquirida, 31 mil eram gestantes e 12 mil ocorrências de sífilis congênita, que é transmitida da mãe para o bebê.

Mas como ocorre e quais as consequências? A sífilis é transmitida por meio das relações sexuais desprotegidas, sangue ou produtos sanguíneos (agulhas contaminadas ou transfusão com sangue não testado), da mãe para o filho em qualquer fase da gestação ou no momento do parto (sífilis congênita) e pela amamentação. 

Logo após a infecção, em uma fase chamada sífilis primária, que ocorre cerca de 21 dias após a exposição à bactéria, surge uma lesão conhecida como cancro duro. Parece um tipo de úlcera,  geralmente única, indolor, com bordas endurecidas e de fundo liso e brilhante. Por ser indolor e comumente localizada na região genital, essa lesão passa despercebida pela grande maioria dos infectados. 

Após esta fase inicial, se não tratada de forma adequada, a doença progride para seu segundo estágio, que chamamos de sífilis secundária, na qual a principal manifestação são lesões cutâneas e erupções ricas de Treponema. Para um olhar desatento, pode parecer apenas uma alergia forte. Seguindo sem o diagnóstico e tratamento eficaz, a sífilis progride para sua fase latente, na qual os sintomas anteriormente citados desaparecem, mas a bactéria persiste no organismo do infectado causando danos de forma lenta e progressiva em diversos órgãos. Nessa fase, o diagnóstico somente é possível por meio da realização de testes específicos, uma vez que o paciente não manifesta sintomas.

Apesar de a testagem rotineira para sífilis ser recomendada para todas as gestantes a cada trimestre da gestação, dados do Previne Brasil, programa do governo federal de financiamento da atenção primária à saúde, indicam que as metas do pré-natal adequado no SUS não foram cumpridas em 65% dos municípios em 2021.

Quando falamos de sífilis congênita, estamos falando de uma doença que foi transmitida por via placentária, de uma mãe que não recebeu o diagnóstico em tempo adequado ou não recebeu o tratamento adequado. As consequências são diversas e vão desde aborto espontâneo, parto prematuro, má-formação do feto, surdez, cegueira, deficiência mental e/ou morte ao nascer. 

No período de uma década, o Brasil deixou de notificar ao menos 45 mil casos de sífilis gestacional, o que aumenta o risco de transmissão vertical da doença, nascimentos prematuros e mortes de bebês. 

Um estudo publicado na edição de setembro do The Lancet Regional Health – Americas, feito a partir de um modelo que considera fatores sociodemográficos, indicadores de acesso aos serviços de saúde e variáveis relacionadas à qualidade dos dados disponíveis para avaliar registros entre 2007 e 2018, afirma que o índice de subnotificação foi de 13%, considerando-se o total de casos de sífilis gestacional registrados no período.

O maior gargalo na prevenção de sífilis congênita é a baixa testagem de mulheres grávidas, apesar de o teste ser disponibilizado gratuitamente pelo SUS. E o que podemos fazer para mudar esse cenário? De forma simples, todos nós podemos intervir compartilhando conhecimento, desmistificando a doença, recomendando a testagem durante os exames pré-natais e conversando com obstetras sobre o rastreio e tratamento adequado quando diagnosticado. 

Devemos lutar pela vida de nossas crianças,,, e isso se faz com assistência materno-fetal adequada, pré-natal bem realizado, orientação quanto ao uso de preservativos durante a gestação, testagem regular de todos os sexualmente ativos, tratamento dos parceiros das gestantes positivas para sífilis, das gestantes e da criança exposta a sífilis.

Antes de finalizar, gosto de citar que um estudo que, ao buscar entender a história natural da sífilis, foi responsável por um dos maiores crimes contra a humanidade e é um exemplo de má conduta científica por sua crueldade. Durante 40 anos, entre os anos de 1932 e 1972, na cidade de Tuskegee, no Alabama, foi conduzida uma pesquisa  que observou 600 homens negros, entre os quais 399 tinham sífilis e 201 eram indivíduos saudáveis. O estudo visava observar a progressão natural da sífilis, sem o uso de medicamentos, comparando os infectados e os não infectados. Não, você não leu errado. Os pesquisadores trataram os 399 homens negros com sífilis como cobaias, sem intervir, sem medicar, apenas vendo como a doença se comportava ao longo dos anos. E isso não é tudo, além dessa conduta, que por si só já é cruel, nenhum dos participantes tinha ciência do diagnóstico ou acesso aos exames realizados. Eles apenas achavam que tinham o “sangue ruim”. Após quatro décadas, quando o estudo chegou ao final, somente 74 pacientes ainda estavam vivos; outros 25 tinham morrido diretamente de sífilis e 100 morreram de complicações relacionadas à doença. As ramificações da experiência tiveram como resultado o fato  de 40 das esposas das cobaias humanas terem sido infectadas e 19 de suas crianças terem nascido com sífilis congênita.

Precisamos falar  sobre, prevenir, testar e tratar sífilis. Precisamos, ainda, lutar para que todos os brasileiros tenham acesso a essas estratégias, o  que atualmente é uma urgência em saúde pública.

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