Cuida

A chegada de um tsunami

Por Paula S. Toledo

1. A calmaria que precede a tempestade 

Antes de um diagnóstico oficial, a espera pelo resultado da biópsia é uma tortura silenciosa. No meu caso, muitos estavam confiantes de que seria apenas um alarme falso, afinal eu era jovem, sem fatores de risco e sem histórico familiar de câncer de mama. Foi sugerido, inclusive, que eu refizesse o ultrassom em três meses, mas optei pela biópsia. Naqueles longos cinco dias de espera pelo resultado, tentei esconder minha inquietação. Mas algo em mim ecoava um silêncio preocupante. Como acontece em momentos antes de um tsunami chegar à costa, o mar recua de acordo com a força das ondas que estão por vir, deixando na praia uma calmaria que antecede uma tempestade. Era exatamente assim que eu me sentia; como se estivesse numa praia desprovida de água.

2. A tempestade 

E, então, o tsunami atingiu a orla. Foram palavras frias e sem empatia que ouvi de um médico patologista: “Seu exame deu positivo. Você está com câncer”. Eu desejava que o mundo congelasse. Mas, contra todas as expectativas, ele continuou girando. E o meu tsunami pessoal começou sem me pedir permissão.

O momento do diagnóstico é um turbilhão. Pra mim foi, sem dúvida, um dos mais difíceis. Depois da tempestade, tudo fica revirado, desordenado. Algumas coisas e até relações se perdem no caos. Não adiantava tentar fugir dele: ele estava em mim. Conforme as horas passavam, resolvi mergulhar na tempestade – fugir não era uma opção. Estudei muito, li artigos e consensos sobre câncer de mama, sabia que conhecimento seria muito válido nessa jornada.

Com os dias, a realização de vários exames, consulta com mastologista e oncologista com bloco de notas cheio de dúvidas, o estadiamento terminou e em menos de 10 dias veio a primeira quimioterapia. Não pensei “por que eu?”. Só pensava no privilégio de fazer tudo tão rápido assim. Com a primeira quimio (a vermelhinha), veio também a náusea, o pavor de perfumes, a dificuldade de encontrar as minhas veias, a mudança do apetite, o afastamento do trabalho, as ondas de calor no meio da noite e os cabelos caindo no travesseiro. Apesar de ser médica, tive contato com um mundo novo e comecei a olhar para o lado de uma forma bem diferente. Novas relações surgiram, o sentido da vida mudou, o mundo parecia outro. Depois do diagnóstico, contar para a minha mãe foi outra etapa difícil. A gente se culpa por estar doente e eu não queria dar essa tristeza a ela. Com o seu abraço acolhedor, suas mãos quentinhas, ela me olhou e disse que passaríamos por tudo isso juntas e meu coração acalmou naquele momento. Tive outras mulheres incríveis que estiveram ao meu lado – que sorte a minha!

Nem tudo são flores. É uma jornada geralmente cheia de imprevistos. Mas foi possível abrir a janela da casa destruída e ver que havia luz lá fora. Quando a gente olha, percebe que há muita gente por perto que também teve a sua casa destruída pela onda gigante. Nesse momento a gente se conecta, compartilha as dificuldades, falamos sobre CÂNCER sem meias palavras, falamos sobre medo, sobre dor, sobre espiritualidade, sobre esperança, sobre gente sem noção, sobre morte, sobre perucas, roupas, assumir a careca ou não, damos risada, choramos, dividimos estratégias para enfrentar possíveis tempestades futuras, mas sobretudo falamos sobre VIDA. 

A solidariedade e a empatia florescem nos lugares e nos momentos mais inesperados.

3. A alvorada  

São meses de quimioterapia, depois cirurgia e radioterapia. Esse é o protocolo inicial de grande parte das mulheres que têm o diagnóstico de câncer de mama. A mídia tem feito um bom trabalho ao cobrir essa parte da história, especialmente nos meses de outubro. Geralmente, a ênfase está na importância da mamografia anual para detecção precoce, nas histórias inspiradoras de superação e nas que terminam o tratamento após 5 anos de diagnóstico, quando somos consideradas curadas. No entanto, o que muitas vezes fica de fora é a discussão sobre o pós-tratamento intensivo, ou como muitas de nós chamamos, o “pós-câncer”. 

Após o tratamento intensivo, quando tudo parece voltar ao normal, surgem novos desafios que, muitas vezes, são negligenciados ou minimizados, inclusive pelos profissionais da saúde. Há efeitos colaterais em médio e longo prazos, desafios emocionais e físicos contínuos, além do medo constante de uma recidiva. Algumas de nós convivem com o que chamamos de “câncer crônico” e são submetidas a tratamentos sem interrupção. Falo de alterações induzidas pela menopausa, problemas de memória, dores crônicas, fadiga, distúrbios do sono, alteração de libido, alterações na imunidade, ganho de peso e até dificuldades para se reinserir no mercado de trabalho. 

Falar sobre câncer ainda é tabu. Mas também é por meio dessas conversas que podemos mudar percepções, educar, quebrar paradigmas e construir um mundo mais inclusivo e empático para todas as mulheres que enfrentam esta jornada. O conhecimento é fundamental para que nós sejamos protagonistas do nosso cuidado e para que a gente possa cobrar de lideranças um acesso igualitário a exames e novas drogas em tempo ideal de tratamento. 

Com o fim de mais um Outubro Rosa, desejo que a coragem para ser vulnerável e para enfrentar os altos e baixos da vida permaneça. 

Desejo também que você consiga pedir ajuda quando precisar, que olhe para si como prioridade, que você conheça uma ONG, pois elas ajudam demais nessa jornada. Celebre suas pequenas conquistas. Brinde. Não fique com dúvidas, anote tudo e pergunte para seu médico na hora da consulta. Se toque, conheça seu corpo. Cuide da sua saúde emocional e entenda que a atividade física também é uma parte crucial do tratamento.

Seguimos juntas. 

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