Por Lilia Lavor
Há alguns anos, recebi um chamado da equipe da UTI do hospital que eu trabalhava, para acompanhar a família de um paciente internado. Ele já estava sedado e assim permaneceu até sua morte. Na ocasião, conheci, inteiramente pelo olhar das filhas e da esposa, aquele senhor nordestino que veio para o sudeste tentar uma vida melhor. Essa história ficou marcada em mim, principalmente porque guardo comigo um cordel que as filhas distribuíram na missa de sétimo dia, que contava a história do pai: A incrível saga do guerreiro da paz.
Pensa comigo: Quando admiramos alguém por sua história, contamos aos outros essa história, nos sentimos tocados ou até transformados por ela, de alguma forma, eternizamos essa pessoa em nós. Isso é o que chamamos de legado. No filme Viva! A vida é uma festa, o personagem Coco conta que aprendeu com sua avó que a morte não existe, só morremos quando os outros nos esquecem. Essa leitura sobre a morte, combina com a ideia do psiquiatra britânico Colin Parkes, de que os vínculos são contínuos e que o trabalho do luto não envolve apenas a separação gradual da pessoa, mas também encontrar um jeitinho de manter proximidade com ela. Aquilo que edificamos em vida tem o poder de incrementar nossa narrativa, construindo significado, o que organiza o discurso e a experiência vivida, dando pistas aos que amamos de como reorganizar sua experiência no mundo sem nós.
A ideia de legado, às vezes, é relacionada apenas a feitos grandiosos, reconhecidos por uma comunidade, com visibilidade e pompa. Mas sabe aquela professora da quarta série, que te inspirava e incentivava na feira de ciências, e que até hoje você lembra dela? Bom, ela deixou um legado aí. Legado se refere a algo que é deixado ou transmitido, geralmente por alguém que passou, cujo impacto é duradouro ou influencia. Podem ser os ensinamentos, valores, tradições, ideias, obras, ou seja, tudo que tenha um impacto na nossa vida, a partir da existência de alguém.
Começamos novembro com um dia significativo, que traz à tona questões relativas à morte e abre espaço para os mais diversos rituais. O Dia de Finados, como conhecemos no ocidente, tem origem cristã no Dia de Todas as Almas, que vem depois do Dia de Todos os Santos, e foi se ajustando à cultura de cada país ou região, de acordo com os costumes de seu povo. No Brasil, é muito comum a visitação ao cemitério, como forma de reverenciar e encontrar proximidade com os entes queridos já falecidos, mas é importante lembrarmos que essa não é a única forma, muito menos uma obrigação.
Eternizar e manter a proximidade com os nossos amores, tem uma função importantíssima no processo de luto e pode acontecer de várias formas. E aqui vão algumas delas:
Lembranças e memórias: um álbum de fotografias, vídeos, o perfume da pessoa, aquela camisa que ela amava, histórias de viagens ou outras aventuras vivenciadas juntos, podem ser reunidas em uma caixinha ou um scrapbook.
Rituais e homenagens: realizar rituais em datas especiais pode ser criativo e ajudar a manter o vínculo emocional. Você pode fazer a comida preferida da pessoa, visitar algum lugar significativo, ouvir uma música ou assistir a um filme que lembre momentos que vocês compartilharam.
Conversas internas: se perguntar o que seu ente querido diria de alguma situação nova ou diante de algum desafio também é uma forma de criar sensação de proximidade. Não tem nada de errado e muito menos de estranho nisso.
Influência duradoura: aqueles comportamentos que a gente reproduz e nos fazem lembrar na mesma hora da pessoa que perdemos são uma forma de identificar o dedinho que ela ainda tem na nossa vida.
Reconstruir nossa relação com o mundo, diante da perda de alguém amado, é um processo difícil e desafiador, mas, acredite, pode ser feito com uma ajudinha da narrativa que vocês construíram juntos. Essa é a força do legado, e ele é a construção do sentido daquilo que nunca tem fim.