Cuida

Mais um Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres sem nada para comemorar

Por Lilian Trigo

Basta uma olhada nas manchetes dos portais de notícia para ver a quantidade gigantesca de casos de violência contra mulheres. Diariamente somos bombardeados com esse tipo de notícia e, por incrível que pareça, passamos a normalizar essa situação. As mortes são apenas números. O estupro, as agressões e o feminicídio são coisas muito distantes da nossa realidade. Afinal, essas coisas acontecem com outras mulheres, não é?

Digo isso com um pouco de vergonha, pois descobri recentemente que não sei como agir diante de um caso de violência. Sofri um pequeno acidente doméstico e precisei ir ao pronto atendimento. Sentado não muito distante de mim estava um casal: ela com pouco mais de 20 anos estava calada e cabisbaixa, ele, mais velho, era falante e animado. Um olhar mais demorado me fez perceber que a moça tinha o rosto bem machucado, coberto de hematomas, os olhos completamente fechados pelo inchaço. O que mais impressionava não eram apenas os sinais de violência, mas a postura corporal dela: acuada, envergonhada e desconfortável. Para quem quisesse ouvir, o homem contava que o estrago no rosto da companheira era resultado de uma queda da bicicleta. 

Durante horas ela não se manifestou. O homem a tratava com estranha indiferença, tanto pela dor que ela deveria estar sentindo quanto pelo seu bem-estar. Em um dado momento, a moça, tendo ouvido pela décima vez a tal história da queda, disse em uma voz muito baixa que o machucado era, na verdade, resultado de um soco. O sorriso forçado do homem desapareceu e ele se aproximou dela e disse com a certeza de impunidade de todo agressor: “Em quem você acha que eles vão acreditar, em mim ou em uma vagabunda como você?” 

Apesar de repugnante, a frase dita pelo homem é verdadeira. As denúncias de mulheres agredidas seja na delegacia, na família ou na sociedade são sempre alvo de dúvida. O que ela deve ter feito para provocar tamanha reação do companheiro? Vivemos em um país machista e misógino e, por muito tempo, a violência contra a mulher era amparada – e até incentivada – pelas leis. 

Em 1603, a Coroa portuguesa criou um conjunto de leis que estabeleciam as regras sociais de suas colônias, chamado Ordenações Filipinas. Em seu quinto volume, o código dava especial atenção às relações conjugais. O pátrio poder, antes exclusivo do pai, passava a ser exercido também pelo marido, que tinha o direito de punir fisicamente a esposas sem consequências legais. Entre as obrigações da mulher estava o débito conjugal, que era um direito do homem, e estabelecia o compromisso de manter um certo número de relações sexuais, sob pena de anulação do casamento. Essas leis vigoraram por 228 anos no Brasil, quando foram parcialmente revogadas pelo código penal de 1830.

As coisas não melhoraram com o novo código, que permitia ao marido castigar a esposa quando tivesse sua honra ameaçada. Outra mudança foi a introdução dos conceitos de “mulher honesta” e “moça de família”, única condição para punir crimes sexuais. Apesar de revogar os resquícios das Ordenações Filipinas, o Código Civil de 1916, era ainda mais conservador, pois transformava em poder a força física do homem. Segundo a nova lei, o casamento poderia ser anulado, caso fosse comprovado que a mulher não era virgem. Outra mudança foi a adoção, por parte da esposa, do sobrenome do marido, fazendo com que ela passasse a ser integrante da família dele. 

O jurista Nelson Hungria, considerado um dos maiores expoentes do direito brasileiro e redator do Código Penal de 1969, foi um dos grandes responsáveis por amparar o machismo estrutural na legislação. Segundo ele, “A violência por parte do marido não constituirá, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da esposa seja mero capricho ou fútil motivo. (…) A mulher que se opõe a relações sexuais com o marido atacado de moléstia venérea, poderá ser vítima de estupro, caso haja emprego de força física.” E acrescenta, “se a mulher alega, sem qualquer lesão, ter sido estuprada por um só homem, que se utilizou da força física, suas declarações devem ser recebidas com reservas e desconfianças”. 

Com esse salvo-conduto, que homem não se sentia protegido para bater, violentar e matar uma mulher? A ideia de que a mulher pertence ao homem, que é um tipo de propriedade da qual ele pode usufruir e desfrutar como bem entender, dá também o direito a ele de exterminá-la? Argumentos como ‘crime passional’, ‘legítima defesa da honra’, ‘movido por violenta emoção’ foram utilizados até a exaustão por juízes, promotores e advogados de defesa para justificar feminicídios nas décadas de 1970 e 1980. 

Somente em 1988, no Artigo 5º, inciso I da recém promulgada Constituição Federal, a igualdade entre gêneros passou a ser reconhecida: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Alguns avanços foram feitos em defesa dos direitos da mulher com a implementação da Lei Maria da Penha, em 2006, e da Lei nº 13.104/2015, que tornou o feminicídio um homicídio qualificado e o colocou na lista de crimes hediondos. Mas nem o amparo legal conseguiu diminuir os números da violência contra a mulher. Em 2018, a Organização Mundial de Saúde (OMS) colocou o Brasil no 5º lugar entre os países que mais cometem feminicídio no mundo, na frente de países subdesenvolvidos e extremamente violentos. O Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), lançado em 2022, contabilizava 822 mil casos de estupro no Brasil por ano. De 2009 a 2019, foram registrados 50.056 assassinatos de mulheres no Brasil. O recém publicado Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela estatísticas perturbadoras sobre a violência: em 2022, mais de 70% das vítimas de feminicídio tinham entre 18 e 44 anos, com a maioria na faixa etária de 24 anos. As mulheres negras representam 61,1% das vítimas. 

Não é necessário ser feminista ou mulher para se revoltar com esses dados. Basta ser humano. Desta vez foi a moça que ‘caiu da bicicleta’. A próxima pode ser sua mãe, sua irmã, sua mulher, sua filha.

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