Cuida

Homens, o Novembro Azul e essa estranha mania de não se cuidar

Por Carol Sarmento 

O ano é 2023 e o século é o XXI d.C. Sim, depois de Cristo, só para confirmar. A medicina é desenvolvida sem precedentes, informação é acessível para boa parcela da população, existem serviços gratuitos disponíveis cujo objetivo é prevenção primária e secundária de doenças, e os indicadores socioeconômicos mostram evolução favorável nos últimos dois séculos. Vivemos mais tempo, existem vacinas e medicamentos que controlam desde hipertensão, diabetes e até câncer, antibióticos são acessíveis em farmácias em cada esquina e cirurgias de grande porte podem ser executadas com segurança de maneira até remota pelo médico. São tempos favoráveis e de muita modernidade, o que nos leva diretamente a maiores chances de vivermos mais e melhor. 

Parece que estou descrevendo um conto de fadas, não é? Não. Se lançarmos um olhar macro e sem grandes análises de recorte por fatias sociais, as coisas melhoraram muito no quadro geral. Se você quiser mergulhar nessa conversa, sugiro a leitura do livro Factfulness: o hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos, do Hans Rosling, e me coloco à disposição para uma conversa sobre as reflexões propostas pelo autor.

A minha conversa é dirigida para a ala masculina da nossa sociedade. Ei, é com você mesmo que quero falar, rapaz! Estamos em novembro de 2023, todos os cenários de saúde estão pintados de azul e o mote desse mês é a prevenção do câncer de próstata. Também existe toda uma campanha para desmistificar a prevenção e incentivar a ida ao médico, a coleta de sangue para exames e o toque retal a depender da combinação das variáveis idade, fatores de risco e nível sérico de PSA. Ah! meninos, lembrem-se: para tudo funcionar direitinho é preciso de seguimento e regularidade para monitorar a investigação. 

Hoje, quero falar sobre – e para – os caras que recheiam os dados que seguem: um levantamento recente da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) revelou que 46% dos homens acima dos 40 anos de idade só vão ao médico quando apresentam algum sintoma. Esse é um comportamento típico que dificulta demais práticas preventivas e diagnóstico precoce em várias doenças, entre elas o próprio câncer de próstata. Isso em pleno século XXI. 

Porém, analisar a postura masculina de não aderir a prevenção, cuidados regulares com saúde e boas práticas de saúde, cientificamente comprovadas somente diante da ótica do câncer de próstata, me parece um tanto reducionista. Vamos aos fatos: 

– Com base em dados do IBGE de 2021, sabemos que nos 10 anos anteriores, a população brasileira ganhou 2,4 anos de vida a mais. Para a população masculina, a esperança de vida ao nascer seria de 73,6 anos, e, para as mulheres, de 80,5 anos, em 2021. São quase 7 anos de vida a mais para mulheres, vejam só. 

– Muito embora as mortes por infarto entre jovens brasileiras estejam crescendo, ainda a taxa de mortalidade média padronizada para o Brasil no sexo masculino (108,14 óbitos/100.000 homens) foi 1,75 vezes maior do que a do sexo feminino (61,49 óbitos/100.000 mulheres). 

– Voltando para o câncer e trocando o foco da próstata para uma topografia próxima, segundo dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH/Datasus) do Ministério da Saúde, em 2022 foram registrados de janeiro a novembro 1.933 casos de câncer de pênis no país e 459 amputações do órgão. Repara que estou falando aqui de uma doença que faz lesão visível, de crescimento progressivo e com sinais clínicos claros. Mais ainda: uma doença que é claramente evitada por boas práticas de saúde higiene adequada do pênis, tomar vacina contra HPV, realização de postectomia (também conhecida como cirurgia de fimose), usar preservativos em relações sexuais, evitar tabagismo e zoofilia (PASME!). A triste estatística do câncer de pênis no Brasil faz sermos um dos maiores números da doença no mundo, e em 2020 foram 463 homens que morreram em decorrência da mesma. 

– Pesquisas americanas e brasileiras mostram que as mulheres adotam crenças e práticas pessoais de saúde mais saudáveis do que os homens. Estes sabidamente têm pior qualidade de vida e menos adesão a boas práticas de saúde: bebem mais, fumam mais, são mais sedentários e manejam pior o estresse do que mulheres. Além disso, as práticas sociais que podem prejudicar a saúde masculina são frequentemente significantes de masculinidade e funcionam como instrumentos que homens utilizam na negociação de poder e status social. Afinal, beber pouco ou não beber não é coisa típica do machão, fumar tem um quê de macho alfa, objetivar ser fit é “coisa de mulherzinha” e estar em dia no urologista é “coisa de boiola” – assim diz o imaginário coletivo que atrela tais práticas ao sexo forte.  

As questões de socialização dos homens infelizmente não são permeadas por construtos sobre cuidar de si, sobre a valorização do corpo no sentido da saúde e o cuidar dos outros. Cada vez que socialmente colocamos os indivíduos do sexo masculino em posição de serem “mais resistentes” às doenças, serem “os provedores natos” das demandas financeiras, os “varões que não pegam doenças” apesar de se valerem de toda e qualquer prática de risco, erramos e assinamos embaixo da falsa autoproteção e associação perigosa entre masculinidade, virilidade e falta de proteção e cuidado para consigo. 

O cuidar da saúde dos homens passa pela construção de uma masculinidade responsável, ética e compassiva consigo e para com quem lhes rodeia. E passa por acolhimento, conscientização e desenvolvimento de estratégias que sejam eficientes em integrar, não culpabilizar e prover construção, interesse em boas escolhas e continuidade de boas práticas para esses homens. Reduzir a discussão somente com foco no novembro azul pode resultar em baixa adesão, parca autonomia para bem escolher e falta de um cuidado integral para essa parcela da população. 

Acredito que seja necessário entender os comportamentos masculinos relacionados à saúde e ir fundo em discutir questões de gênero. Falo isso porque acredito que esse mergulho pode ajudar a entender fatores que corroboram para maior mortalidade, menor adesão a medidas preventivas e a menor frequência a serviços de saúde na população masculina. E isso tem a ver com o novembro azul e com todos os meses do ano e todas as doenças de impacto populacional com que lidamos. 

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