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Como o cinema ajudou a conscientizar o público sobre a AIDS

Por Lilian Trigo

É quase impossível para alguém nascido no começo do século XXI imaginar o que foi a epidemia da AIDS nos anos 80. Talvez o primeiro ano da pandemia possa dar uma ideia da angústia de viver sob a ameaça de uma doença sem a menor possibilidade de uma cura imediata. 

O Dia Mundial da Luta Contra AIDS foi comemorado pela primeira vez em 1º de dezembro de 1988. Idealizado por James W. Bunn e Thomas Netter, dois agentes de informação pública do Programa Global sobre AIDS (atual UNAIDS) da Organização Mundial de Saúde, tinha como objetivo diminuir o estigma em torno da doença e promover o diálogo e a troca de experiências sobre o assunto.

Os primeiros casos foram diagnosticados em 1981 e, como a maioria dos pacientes era homossexual, a doença foi erroneamente classificada como câncer gay. O preconceito gerou uma onda de homofobia e, como na época ainda não havia medicamento para tratá-la, a AIDS era considerada por muitos uma sentença de morte. No dia 4 de fevereiro de 1983, os pesquisadores do Instituto Pasteur de Paris isolaram pela primeira vez o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), que destrói o sistema imunológico e propicia o desenvolvimento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), e assim a doença começou a ser mapeada oficialmente.

O ano de 1985 pode ser considerado o ano em que foram alcançados os maiores avanços, tanto em matéria científica como na maneira como a AIDS era tratada na América. Foi o ano em que o governo Reagan finalmente admitiu que existia uma epidemia. A imprensa e a opinião pública, até então indiferentes, não puderam mais varrer o assunto para baixo do tapete depois da morte de Rock Hudson, a representação do galã macho americano. No meio de tudo isso, surgiu Buddies, o primeiro filme a abordar o assunto. Escrito e dirigido por Arthur J. Bressan Jr., foi filmado em nove dias com um orçamento de 27 mil dólares e exibido pela primeira vez no Festival Internacional LGBT de San Francisco, em setembro daquele ano. O filme desapareceu e ficou esquecido durante muito tempo, até ser resgatado e restaurado por Jenni Olson, cineasta e pesquisadora da cultura LGBT.  

No ano seguinte, coube a Steve Buscemi, no seu segundo filme, interpretar o soropositivo Nick em Parting Glances – Olhares de Despedida. No entanto, o grande filme da década, Meu querido companheiro, só foi lançado em 1989. O diretor estreante, Norman René, reuniu um elenco de caras novas, que logo se tornariam conhecidas, como Campbell Scott, Mary-Louise Parker, Bruce Davison, Dermot Mulroney e Tony Shalhoub. O filme é um retrato comovente de como as relações amorosas e de amizade são afetadas pela epidemia.

A década de 90 é considerada a ‘era de ouro’ dos filmes sobre o tema. Para o grande público, Filadélfia, de Jonathan Demme, foi o filme que tirou a AIDS da marginalidade e trouxe o assunto para a sala de jantar. Vencedor de 2 prêmios da Academia, foi também o ponto de virada na carreira de Tom Hanks que, depois de conquistar o Oscar por sua interpretação do advogado Andrew Beckett, deixou de lado a imagem de comediante e passou a ser respeitado como um ‘ator sério’. O mesmo aconteceu, 20 anos depois, com Matthew McConaughey em Clube de Compras de Dallas.

O filme E a vida continua, do diretor canadense Roger Spottiswoode é uma adaptação do livro do premiado jornalista Randy Shilts e acompanha a progressão da AIDS de 1980 a 1985, na área de San Francisco. Shilts, que se recusou a saber o resultado do seu exame até ter terminado o manuscrito, entrevistou centenas de pessoas, entre políticos, cientistas, atores, ativistas e até Gaëtan Dugas, comissário de bordo canadense que por anos foi considerado o “paciente zero” da doença.

Na metade da década, surgiram filmes que retratavam pacientes fora do grupo de risco. Kids, de Larry Clarke, apresenta pela primeira vez adolescentes heterossexuais como portadores do vírus. Somente elas, drama estrelado por Woopi Goldberg, Drew Barrymore e Mary-Louise Parker, mostra a improvável amizade entre essas três mulheres e como elas lidam com a doença de uma delas. O belo A Cura aborda o contágio através de transfusão de sangue e a viagem de dois garotos em busca de um médico que supostamente poderia curar a doença.

Muitos foram os filmes europeus sobre o tema, mas poucos causaram o impacto de Noites Felinas. O filme é baseado na autobiografia de Cyril Collard, ganhador póstumo do prêmio César, o Oscar do cinema francês. Collard era poeta, ator e cineasta, uma espécie de crossover entre Cazuza e Caio Fernando Abreu. Da Espanha vem o premiado Tudo sobre minha mãe de Pedro Almodóvar. Em 2001, Um Amor Quase Perfeito, do diretor turco naturalizado italiano Ferzan Özpetek, mostra a infectologia Antônia, que depois da morte inesperada do marido, encontra apoio e acolhimento numa excêntrica comunidade de gays, trans, prostitutas e imigrantes. O diretor britânico Derek Jarman fez de Blue seu filme testamento. Inédito no Brasil, o filme alemão Vakuum, de 2017, conta o drama de uma mulher de 60 anos que, às vésperas de comemorar 35 anos de casamento, descobre ter sido infectada pelo marido.

O cinema brasileiro tem poucos filmes sobre o assunto, mas vale destacar os longas-metragens Cazuza: O Tempo Não Pára e Carandirú. Já Boa Sorte é uma adaptação do conto de Jorge Furtado, “Frontal com Fanta”, dirigida por Carolina Jabor, com a atriz Deborah Secco como protagonista.

Nada colaborou mais para o debate que o teatro e suas adaptações para as telas. Angels in América, a megalomaníaca peça de Tony Kushner, de mais de 7 horas de duração, virou uma minissérie da HBO, dirigida por Mike Nichols, com o estrelado elenco encabeçado por Al Pacino, Emma Thompson, Meryl Streep e Jeffrey Wright. O drama de Terrence McNally, Entre Amigos, vencedor do prêmio Tony de 1995, que conta a história de um grupo de amigos que se reúne numa casa de praia durante um feriado, chegou aos cinemas apenas dois anos após a sua estreia na Broadway. O musical Rent: Os Boêmios, versão moderna da ópera “La Bohème”, troca tuberculose pela AIDS e Paris pelo Village. Em 2014,  The Normal Heart, peça de Larry Kramer estreou no circuito off-Broadway em 1985 e voltou a ser encenada em 2011, virou um filme da HBO estrelado por Mark Ruffalo, Julia Roberts, Matt Bomer, Jim Parsons, Alfred Molina e Taylor Kitsch.

O documentário Caminhos Cruzados, vencedor do Oscar em 1990, conta a história de cinco pessoas, que morreram nos primeiros anos da epidemia, cujos nomes estavam na AIDS Memorial Quilt, a gigantesca colcha de retalhos que foi colocada, pela primeira vez, na frente da Casa Branca em 1987. Um dos depoimentos mais comoventes é de Vito Russo, ativista e autor do livro “O Outro Lado de Hollywood”, Em 2011, a HBO encomendou ao produtor e diretor Jeffrey Schwarz um documentário sobre a vida de Russo, que morreu em 1990, intitulado Vito.

Vale destacar a produção documental não americana. Através de seis personagens de diferentes gerações, Everybody Toditos, retrata os 30 anos da epidemia de AIDS na comunidade LGBT da República Dominicana. Já Memory Books – Damit du mich nie vergisst…, documentário da cineasta alemã Christa Graf produzido em Uganda, mostra mães soropositivas que escrevem diários para os seus filhos. Lançado em 2016, o curta-metragem Promising Practices in Indigenous Communities in Saskatchewan mostra o crescimento do contágio nas comunidades indígenas no Canadá, que atinge índices alarmantes, quatro vezes maiores que a média nacional. Do mesmo ano é Doin’ My Drugs, que conta a história do músico zambiano Thomas Muchimba Buttenschøn, que nasceu HIV positivo e emigrou para a Dinamarca para um tratamento experimental.

Nos últimos tempos, os cinemas têm concentrado sua narrativa contando histórias de pessoas reais que tiveram suas vidas impactadas pela AIDS, como Tom of Finland, filme biográfico sobre Touko Valio Laaksonen, uma figura importante da arte erótica do século XX. O belíssimo 120 batidas por minuto, que ganhou o grande prêmio no Festival de Cinema de Cannes, retrata a jornada dos ativistas franceses do grupo “ACT UP”. Por fim, Bohemian Rhapsody acompanha a jornada da banda britânica Queen e de seu extravagante vocalista Freddie Mercury, de suas origens até a fama mundial.  

Imperdível é a série It’s a Sin, uma produção britânica da HBO Max, que retrata um grupo de amigos que vivem em Londres durante os anos 80 e são profundamente afetados pela epidemia da AIDS. 

Há muito tempo a arte está na vanguarda do combate ao preconceito, conscientizando o público sobre questões altamente relevantes. Os filmes e séries sobre a AIDS não são exceção. Cada um deles tem qualidades únicas que humanizam habilmente uma das doenças mais devastadoras dos últimos tempos, ao mesmo tempo que conseguem comover.