Cuida

Coisas que todos deveriam saber sobre HIV

Por Ana Carolina D’Ettores

Minha experiência diária como infectologista me fez perceber o quanto os pacientes desconhecem a própria doença. Quando alguém chega com o teste de HIV positivo no meu consultório, a primeira coisa que eu faço é perguntar se ele sabe o que é o HIV, se já ouviu falar em HIV. Mesmo quando a resposta é afirmativa, percebo que ele não sabe de fato, porque ninguém explicou de forma objetiva e clara. Então, a primeira coisa que eu digo é que o HIV é um vírus que pode ser transmitido de várias formas. Pode ser da mãe para filho, por uma transfusão sanguínea de uma bolsa não testada, coisa que nos dias atuais já não acontece mais, pode ser por uma agulha contaminada, por acidentes envolvendo contato com sangue, mas, na maioria das vezes, a transmissão se dá por meio de sexo sem proteção. 

Por estar muito relacionada ao sexo, sempre existe uma carga social muito grande de sujidade, de promiscuidade, que não é verdadeira. Para aliviar essa carga, eu sempre pergunto aos meus pacientes: quem nunca transou sem camisinha? Todo mundo já fez sexo sem proteção em algum momento. Seja por descuido, porque esqueceu, porque não quis, porque é mais legal sem, por uma infinidade de motivos. Então, todos estamos vulneráveis ao HIV. E não existe motivo para se sentir sujo, não é?  

Para entender a sua doença, você precisa saber o que ela faz no seu organismo. Quando meu paciente recebe o resultado positivo, eu explico para ele o percurso do vírus e o que está acontecendo no corpo dele. Depois que você é infectado, o HIV vai invadir várias células do corpo, mas, principalmente, aquela que é a mais importante, nossa célula de defesa chamada linfócito CD4. Esse linfócito funciona como o muro da nossa casa, que nos protege contra a invasão de ladrões (nesse caso, estamos falando das infecções). Quando o HIV invade o CD4, ele se replica com todo o aparato que precisa dentro da célula e, quando vai sair para invadir outras células, ele mata o linfócito. Assim, à medida que o HIV vai se replicando no corpo, ele vai gerando uma queda progressiva da imunidade. 

Hoje, nós temos remédios que impedem esse ciclo do vírus HIV. Eles bloqueiam diversos pontos da replicação que deixam o vírus incapaz de se reproduzir, destruir a célula e invadir outras células. E, assim, progressivamente, o organismo consegue restabelecer a imunidade. No decorrer do tratamento, chegará um momento em que a carga viral será indetectável. E isso não significa cura, significa que o vírus não está mais se replicando a ponto de não ser mais detectado no sangue da pessoa. É importante lembrar que o paciente não está curado, porque a ausência do vírus no sangue é ação direta dos remédios. Se a gente tirar o remédio, o vírus vai voltar, replicar e será outra vez detectável no sangue. 

O que acontece quando o vírus não é bloqueado? Se ficar replicando descontroladamente, ele vai destruir todos os linfócitos CD4 e mexer muito nos nossos mecanismos de defesa. Eventualmente, vai chegar em um ponto tão baixo que vai entrar no quadro de AIDS, que é a doença provocada pelo HIV. Com a AIDS, a pessoa fica vulnerável a diversas infecções, que nós chamamos de infecções oportunistas. E algumas doenças que são tratáveis em pessoas que não têm HIV, podem levar ao óbito aquele que tem AIDS, como a neurotoxoplasmose, pneumocistose, citomegalovírus disseminados entre outras. 

O que é monitorado durante o tratamento? Nós monitoramos os níveis de CD4 e também a carga viral. Depois que a carga viral fica indetectável, o CD4 deixa de ser tão importante no monitoramento, porque sabemos que ele ficará preservado. Não tem como o CD4 cair se a carga viral estiver indetectável. 

Uma coisa muito importante, que nós sabemos hoje em dia, é que se o paciente está indetectável há pelo menos seis meses em tratamento regular, ele passa a ser intransmissível. Isso significa muito para as pessoas que vivem com HIV, porque durante muito tempo elas carregaram o estigma de ter uma doença que era uma sentença de morte. Hoje, nós temos bastante embasamento científico para saber o que significa estar intransmissível e o quanto isso tira um peso social de quem vive com HIV. Para você ter uma ideia, antes desse conhecimento, nós contraindicávamos a gestação para as mulheres que tinham HIV. Hoje é possível uma mulher que vive com esse vírus ter parto normal, amamentar, cuidar do seu bebê, fazer planejamento familiar, que eram coisas impensáveis há alguns anos. 

É importante destacar a melhora do tratamento do HIV. E eu nem estou falando de muito tempo atrás. Quando eu entrei na residência, há uns dez anos, o esquema inicial de tratamento, que era considerado top, era de seis comprimidos, duas tomadas diárias de três comprimidos. Hoje, nós falamos de esquemas que começam com um, dois comprimidos uma vez ao dia, com baixíssimos efeitos colaterais, com alta eficácia, alta potência, baixa interação com outros medicamentos. Então, houve um avanço muito grande. É desconfortável? Sim. Sempre que a gente introduz uma coisa nova, vai gerar desconforto, mas o conforto posológico é muito maior, a segurança do tratamento é muito maior. E tem muita gente que toma mais comprimidos de vitamina diariamente que os pacientes no tratamento do HIV. Atualmente nem faz mais sentido usar o termo coquetel, que era como chamavamos o conjunto de medicamentos usados no tratamento, porque realmente eram muitos comprimidos. 

Em relação aos efeitos adversos, nós já não observamos mais aqueles efeitos dramáticos que existiam no início da epidemia. Os primeiros antivirais foram importantíssimos para salvar muitas vidas pelo mundo, mas eles tinham efeitos colaterais muito sofridos. Eles causavam lipodistrofia, que é a alteração da distribuição da gordura pelo corpo, deixando a pessoa com aqueles sulcos marcados, com uma deposição de gordura no bico de papagaio, que nós chamamos de giba óssea, e causavam algumas deformações; era fácil notar que a pessoa fazia uso de alguma medicação relacionada ao HIV. Hoje, isso não existe mais. Hoje em dia, o HIV não tem cara. Você certamente vai cruzar com pessoas que estão em tratamento há anos e não vai saber. Esse foi um avanço muito grande na qualidade de vida de quem vive com HIV.

Eu gosto de dizer que o HIV, quando acompanhado e tratado de forma adequada, não vai limitar sua vida. Não vai limitar sua vida do ponto de vista reprodutivo, você vai poder ter filhos de forma natural e segura, sem transmitir nada para o bebê. Não vai te limitar nas atividades físicas, você pode e deve se exercitar, porque isso vai trazer benefícios à sua saúde. Existem atletas de alta performance com HIV e eles não têm nenhum tipo de restrição pelo uso do remédio. Não vai te limitar socialmente, você vai poder ir a festas, dançar, se divertir, beber, desde que moderadamente e com equilíbrio, sem nunca deixar de tomar seus remédios para poder aproveitar ainda mais esses eventos. 

Ninguém precisa virar ativista do HIV de um dia para o outro. Você não precisa compartilhar sua condição, você é protegido por lei, pelo sigilo médico. Você não precisa nem falar para outros médicos que você tem HIV. Você precisa de tempo para assimilar, entender como vai ser sua nova rotina de vida, para daí, sim, decidir se vai compartilhar com alguém. E, caso você decida não falar, tudo bem, ninguém é obrigado a falar sobre diagnóstico. Você não vê as pessoas falando sobre condições de saúde, tipo “Ah, eu tenho depressão.”, “Eu tenho câncer de próstata.” Se isso não acontece no dia a dia para outras doenças, então por que deveria acontecer com HIV?

Para finalizar, gostaria de falar sobre a transmissão. É importante ressaltar as formas como o HIV é transmitido, para acabar de vez com os ‘mitos’ que envolvem a doença. Não passa pela saliva, pelo suor, pela urina e pelas fezes. Então, não precisa ter medo de abraçar, de beijar, de sentar no mesmo lugar, de usar o mesmo talher, de usar o mesmo banheiro, nada disso passa HIV. A transmissão é feita única e exclusivamente pelo  sangue e pelas secreções vaginais e seminais. 

Progredimos muito nos últimos anos no tratamento do HIV. Há 30 anos, era inimaginável um paciente vivendo uma vida normal, com a doença controlada apenas por medicamentos. O que não mudou foi a prevenção, porque camisinha, autocuidado e bom senso continuam sendo indispensáveis.

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