Por Carol Sarmento & Dani Moraes
Ela acorda cedo, recolhe os brinquedos e prepara o café da manhã da família. Organiza a lancheira das crianças, acorda os filhos e arruma para a mochila deles. Troca de roupa rapidinho e, antes de sair, oferece ao pai a medicação que deve ser administrada em jejum. Na noite anterior, ela já havia adiantado o almoço. No caminho até a escola, passa para buscar o resultado dos exames, feitos recentemente pela mãe. Beija os filhos e se despede deles, já atrasada. De volta à casa, se divide entre os serviços domésticos, o apoio aos pais idosos e o preparo das encomendas de bolos que garantem o sustento da família. Enquanto, estão no forno, aproveita para trocar a roupa de cama, pagar contas, agendar consultas e fazer a lista do mercado.
É fácil imaginar ou lembrar de alguma conhecida que tenha uma rotina semelhante. A situação, tão comum, está associada a uma parcela da população identificada como: “geração sanduíche” – composta majoritariamente por mulheres que, no dia a dia, dedicam suas horas a cuidar não apenas da casa, do trabalho e da vida pessoal, mas também das crianças e dos idosos da família.
A médica paliativista e intensivista, Carol Sarmento, diz que o perfil é frequente entre seus pacientes. Esse grupo é composto, em sua grande maioria, por mulheres que, historicamente, já são socialmente responsabilizadas pelo cuidado em geral e enfrentam uma divisão desigual e injusta, gerando sobrecarga e adoecimento. “Ser responsável pelo cuidado dos descendentes e ascendentes é desafiador no cenário emocional, financeiro e físico”, explica. Carol destaca que as pessoas que se encontram neste cenário são propensas a sofrer estresse crônico e transtornos psicológicos e mentais, em decorrência do acúmulo de funções, e não conseguem priorizar o próprio bem-estar, descanso, autocuidado e desenvolvimento pessoal.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio Contínua (Pnad Contínua) do IBGE, em 2019, demonstraram que 54,1 milhões de brasileiros com 14 anos ou mais cuidavam de outros moradores da sua casa ou de parentes. Em 2022, o mesmo IBGE apontou que a “geração sanduíche” corresponde a mais de um terço da população, sendo 51% mulheres. Segundo Dani Moraes, escritora e educadora emocional, é comum que a responsabilidade pelo cuidado multigeracional tenha demandas semelhantes, ainda que de natureza diversa. “O processo de envelhecimento muitas vezes traz a necessidade de apoio, acompanhamento e cuidados de saúde, por exemplo, tão ou mais exigentes do que aqueles dispensados às crianças. E sabemos que, assim como na criação dos filhos, o trabalho de cuidado recai, sobretudo, nas mulheres. Isso faz com que profissionalmente recorram à informalidade, com prejuízo na geração de renda, para que seja possível sustentar financeiramente suas famílias, enquanto cuida das crianças, dos idosos e dos serviços domésticos”.
As pesquisas sobre essa parcela da população indicam que o fenômeno é prevalente entre mulheres de 35 a 49 anos, que cuidam e moram ao mesmo tempo com crianças, jovens (que saem cada dia mais tarde de casa) e idosos. “Se considerarmos ainda as mulheres, responsáveis por esses cuidados, que não necessariamente convivem na mesma casa, o número é ainda maior”, destaca Dani. Ela ressalta ainda que a convivência multigeracional pode gerar benefícios e trazer trocas ricas para as relações, o problema é o trabalho do cuidado de ambas as gerações ser uma atribuição compulsória das mulheres. “Depois de cumprir uma lista interminável de tarefas, essas mulheres chegam ao final do dia extremamente cansadas e com uma inevitável sensação de frustração. Afinal, não é possível dar conta sozinha de tantas atribuições. O que vemos são mulheres sofrendo por questões de saúde mental, muitas delas medicalizadas, não com a intenção de cuidarem do seu próprio bem estar, mas, sim, para que possam continuar funcionais, mantendo uma rotina exaustiva, sem qualquer percepção ou alteração na qualidade de vida”, conclui Dani, que faz parte do projeto Cuida, idealizado pela médica Carol Sarmento para levar informações sobre autocuidado para públicos diversos.
Uma visão para o futuro dessas mulheres
A idealizadora do Cuida, Carol Sarmento, acredita que seria socialmente importante que a atual “geração sanduíche” fosse a última a viver dentro desta realidade, rompendo com esse ciclo de sobrecarga. “Não basta apenas que os adultos de meia-idade saiam dessa situação, mas também garantir que as gerações futuras não tenham o mesmo destino”, explica. Para isso, é necessário, por exemplo, se preparar financeiramente para dar suporte aos pais e filhos em crescimento – ajustar as expectativas financeiras, planejar investimentos, seguros e a aposentadoria. “É essencial também que essas mulheres estabeleçam limites, recebam ajuda dos demais familiares nas demandas e custos envolvidos, sem se valer de uma postura evitativa e que tende a recusar o apoio de outros”, finaliza a médica.
Para Dani Moraes, “é preciso também repensar as políticas públicas que envolvem toda a cadeia do cuidado em nossa sociedade”, acredita a educadora e pesquisadora do tema. “As questões estruturais não garantem condições sequer para a criação das crianças, que dirá para dar conta dos cuidados específicos com idosos. Não é por acaso que o mercado de trabalho é tão perverso com as mulheres, que em geral recebem os menores salários. Recai sobre elas o peso do cuidado e a discriminação justamente por conta das demandas impostas por essa realidade”. Dani ressalta ainda que, diante disso, até mesmo os cuidados pessoais básicos são percebidos como mais uma obrigação na vida dessas mulheres. “Falamos da importância do autocuidado, que de fato é essencial – afinal, precisamos estar bem cuidadas para poder cuidar –, porém, diante de tamanha responsabilidade acumulada, essa necessidade muitas vezes é percebida como mais uma exigência”, finaliza Dani.