Por Luiza Testa
Atualmente com uma grande retrospectiva na Pinacoteca do Estado de São Paulo, Lygia Clark redefiniu os limites entre arte e terapia, mostrando que a experiência estética pode ser uma poderosa ferramenta de cura.
Nascida em 1920 em Belo Horizonte, Lygia Clark é reconhecida como uma das mais influentes artistas brasileiras do século XX. Clark começou sua carreira no campo das artes visuais, mas se moveu rumo a uma prática terapêutica inovadora, integrando aspectos sensoriais, emocionais e psíquicos. Esta mudança faz dela uma figura importante não apenas no mundo das artes, mas também no campo da saúde, especialmente para médicos, paliativistas e psicólogos que buscam novas formas de promover o bem-estar integral de seus pacientes.
Lygia iniciou sua carreira artística nos anos 1950, vinculada ao movimento neoconcreto, que estimulava a participação ativa do espectador e a interação com a obra de arte. Rapidamente, destacou-se com suas “Superfícies Moduladas” e “Planos em Superfície Modulada“, onde já explorava a tridimensionalidade instigando a participação do público. Sua obra mais famosa deste gênero – e, possivelmente, da carreira – é a série “Bichos”, esculturas articuladas de alumínio projetadas para serem manipuladas pelo espectador, desafiando sua tradicional passividade e suscitando uma experiência estética mais profunda.
Durante os anos 1960 e 1970, Clark começou a explorar a relação entre arte e terapia de forma mais explícita. Estudou psicanálise e começou a considerar o potencial terapêutico da arte. Assim, abandonou progressivamente a produção de objetos artísticos e passou a focar em proposições que envolviam o corpo e os sentidos, como a “Estruturação do Self“, onde o indivíduo podia integrar partes de si mesmo que estavam fragmentadas ou dissociadas.
Neste método, são centrais os “Objetos Relacionais”, itens cotidianos como sacos plásticos, pedras, conchas e elásticos que, quando manipulados pelos participantes, despertam memórias e sensações profundas, facilitando a reconexão com aspectos esquecidos ou reprimidos da psique. Cada objeto tem uma função específica e evoca diferentes sensações e reações dos participantes. “Caminhando“, por exemplo, é uma obra que consiste em uma fita que o participante corta, criando um caminho infinito. Esta atividade simples, mas profundamente simbólica, remete à ideia de um percurso sem fim, refletindo sobre a própria jornada de autoconhecimento e transformação.
Em outra obra, “Baba Antropofágica“, participantes enfiam na boca um emaranhado de fios que vão puxando e colocando sobre o corpo de um outro, que recebe a “baba”. Clark acreditava que a manipulação desses objetos poderia catalisar processos internos de cura, pois ao engajar-se fisicamente com os objetos, os participantes eram levados a uma maior consciência de suas sensações corporais e emocionais, facilitando a emergência de memórias e sentimentos reprimidos.
Clark não foi a única a justapor arte e saúde mental: na tradição da arte contemporânea, vários artistas exploraram esta intersecção, como Joseph Beuys e Yoko Ono. Hélio Oiticica foi uma inspiração significativa, compartilhando a visão de uma arte participativa e sensorial, enquanto o psicanalista Wilhelm Reich influenciou sua compreensão da relação entre emoções e o corpo. Entretanto, a contribuição de Lygia Clark para o campo da saúde é inestimável. Sua abordagem inovadora inspirou terapeutas a incorporar elementos sensoriais e artísticos em suas práticas e a artista mostrou que a arte pode ser uma poderosa ferramenta de cura, capaz de promover a reconexão com aspectos profundos da identidade e facilitar a transformação pessoal.
Embora hoje seja amplamente reconhecida, ela enfrentou significativa resistência e incompreensão durante sua vida, especialmente nos círculos tradicionais da arte. Sua transição da criação de objetos artísticos para práticas terapêuticas foi vista com grande ceticismo por críticos e colegas artistas. Felizmente, a artista se manteve firme em seu compromisso com a inovação e a exploração da arte como um meio de cura. Ao explorar a interseção entre arte, sensorialidade e psique, Clark nos legou um caminho inovador e transformador para a cura e o autoconhecimento.
A exposição “Lygia Clark: Projeto para um Planeta” está em cartaz na Pinacoteca de São Paulo até 4 de agosto de 2024. Com curadoria de Ana Maria Maia e Pollyana Quintella, a mostra apresenta mais de 150 obras que abrangem diversas fases da carreira de Clark, inclusive “Objetos Relacionais”, que podem ser manipulados pelos visitantes, e algumas de suas obras mais importantes, proporcionando uma visão abrangente da evolução artística de Clark e sua conexão com a cura e a terapia.