Cuida

A cachoeira, os respingos e a gente à volta dela

Por Alyssa Miranda 

Em meio a tantas faces do sofrimento, e entendendo que somos humanos e que, portanto, a dor do outro também dói na gente, me faço um questionamento: como podemos cuidar do outro sem cuidar de nós mesmos? A resposta é simples: NÃO PODEMOS. É como olhar uma cachoeira sem poder mergulhar. Se estamos muito perto, mesmo que fora dela, a água, pela sua força, respinga na gente. Ao nos afastarmos, nos protegemos dos respingos, mas ainda conseguimos contemplar a cachoeira.

É difícil mensurar o quanto uma doença impacta a família, uma vez que existem tantas formas de constituições familiares e, por sua vez, diferentes maneiras de relacionamento entre elas. No entanto, quando penso em família, logo penso em vínculo. Um elo entre pessoas e no qual o sentimento que as une é o afeto.

Cuidar é um modo de agir carregado de experiências e valores, que sofre interferência de aspectos políticos, sociais, culturais e históricos que, por sua vez, se traduzem em ações de pessoas umas em relação às outras. Além disso, o cuidado é dinâmico e apresenta necessidades diversas, tanto para quem oferece quanto para quem recebe. No decorrer da doença e, principalmente, no seu agravamento, o manejo do cuidar pode ser afetado, uma vez que impacta diretamente os sentimentos daquele que cuida, causando ansiedade, medo, insegurança, entre outras coisas. 

Entender o funcionamento familiar, as necessidades e as formas de cuidados de cada família é imprescindível para que nós, profissionais de saúde, possamos encaixar o nosso olhar como cuidadores. Mais do que isso, precisamos compreender que o sofrimento sociofamiliar é, sem dúvida, motivo de dor para o nosso paciente e, assim, deve ser parte do nosso foco de atenção. Oferecer cuidado a alguém ou a uma condição é entender autenticamente aquilo que é importante para aquela pessoa naquele momento.

Na minha prática profissional, como oncologista, tenho presenciado momentos que me ensinam e me fazem refletir. O diagnóstico era de um hepatocarcinoma. Avançado. Irressecável. A paciente, uma mulher de 59 anos, entra no meu consultório com a filha. As duas estão assustadas. No hospital haviam pedido que indicassem uma oncologista católica. A filha logo toma a frente e diz tudo que a mãe está sentindo, certa de que bastava começar logo a imunoterapia e que a mãe, em pouco tempo, estaria curada. Pergunto o que elas sabem sobre o diagnóstico. “É aquela doença com C, que não gosto nem de falar o nome, né, Dra?”. Sim. É câncer no fígado. Talvez um dos diagnósticos mais difíceis que tive que dar. Alí, depois de ouvir a minha explicação, a filha virou a paciente. Era dela todo o sofrimento e a dor da doença. Ela dizia: “Doutora, eu não posso ficar sem a minha mãe. Ela é tudo para mim. Eu não vivo sem ela”. De um momento para outro, o fluxo do cuidado mudou e a doença deixou de ser o mais importante; o objetivo passou a ser acolher aquela filha. 

Depois que foram embora, pensei: como essa filha tão frágil emocionalmente vai conseguir cuidar da mãe? E como eu vou conseguir cuidar das duas? Como vou acessar essa vulnerabilidade sem interferir na vontade de viver? Ouvir a filha foi fundamental para criar uma relação de confiança. Perceber e compreender o que para ela era importante dentro do cuidado da mãe. O caminho do cuidado segue cheio de desafios para nós três. 

Nessa espiral, entre cuidar e ser cuidado, é preciso não temer se molhar ao se aproximar da cachoeira. Os respingos são naturais e atingem todos que estão à sua volta. No entanto, há que se respeitar a força da natureza e ter cautela em cada aproximação. Assim, cuidar vai além de se colocar no lugar do outro; o outro não é mais uma única pessoa, senão todos aqueles que são tocados de alguma forma pela doença e pelo seu tratamento.

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