Cuida

Dia do enfermo: você não é a sua doença

Por Alessandro Kerkovsky

Olá, como está hoje?

– Melhor, responde o paciente. 

– Estou aqui para te conhecer, teria um tempo pra gente conversar?

– Tenho sim, o Sr. quer sentar? (me oferecem a poltrona ao lado do leito). 

Não precisa, sento aqui mesmo na escadinha que está próximo à cama. 

– Mas me conta, quem é o Sr.?

– Ah eu estava sentindo uma dor, aí procurei o médico…

– Não! Esquece o motivo que o trouxe aqui, deixa pra depois! Estou perguntando quem é o Sr.? Onde nasceu? É casado? Tem filhos? Trabalha? O que te deixa feliz? 

Paciente e acompanhante se olham desconcertados, mas se apresentam, e nesse bate-papo, passamos pela doença, embora naquele momento não fosse o foco. 

Assim, surgem muitas histórias lindas. Histórias que ninguém conta. Diariamente conheço pessoas incríveis que trazem uma bagagem extraordinária de vida, independente da idade que têm, cheias de alegria, sonhos, planos, expectativas para um futuro que agora parece incerto. 

No olhar existe medo. E adoecer faz isso. Descobrir um diagnóstico grave nos tira do eixo, liga o tic-tac do relógio e não sabemos como desligar esse barulho ensurdecedor, que mais ninguém ao nosso lado consegue ouvir na mesma intensidade. Falar da vida, de quem se é de verdade, sempre traz um brilho nos olhos inconfundível, rende sorrisos guardados e contribui no alívio da dor e da preocupação em relação às taxas de exames e laudos da tomografia que mapeiam o corpo, mas que não traduzem o que de fato se passa lá dentro.  

Somos obstinados por vidas hipotéticas. Deixamos a vida em pausa tantas vezes, na expectativa de um melhor emprego, de um relacionamento, de um casamento e de filhos, de uma aposentadoria. Não conseguimos ser felizes em dias úteis, já que fomos programados para começar a viver a partir do “sextou!”. Dizemos para nós mesmos, todos os dias, que o hoje não importa muito, a felicidade está lá no futuro. Talvez por isso lamentamos tanto ao nos vermos doentes e com a vida ameaçada de alguma maneira. Temos tanta pressa todo dia para fazer o que tem que ser feito, que podemos passar uma vida inteira sem nem sabermos o que realmente gostamos de fazer. 

As relações que às vezes parecem normais, na doença são fundamentais. Longas internações ou diagnósticos com prognósticos muito graves rendem inúmeros pedidos de visitas extraordinárias. O desejo de ver filhos talvez seja o campeão. E presenciamos discursos verdadeiros e emocionados, nessas visitas, que são quase uma oração.  O medo que aflora do desconhecido impulsiona conversas sinceras que geralmente não encontramos tempo para tê-las. 

Ao adoecer, as pessoas se conectam com elas mesmas e isso pode ser extremamente desconfortável, mas sem dúvida transgressor. Nunca é tarde para olhar pra dentro, arrumar a bagunça, liberar espaço para uma vivência nova. Ressignificar é a porta estreita para uma transformação imensurável. Quando o GPS recalcula a rota, ele não muda o destino, apenas encontra o melhor caminho para contornar obstáculos. O tempo da viagem muda, o trajeto se altera, mas abre a oportunidade de descobrir novas paisagens e novos horizontes por lugares até então evitados. Nesse caminho pode haver dor, insegurança, mas também muito amor. Amar sempre funciona, é a receita mais assertiva do mundo. Curamos todo dia e somos curados simplesmente por amar. 

É exatamente por esse amor que familiares de pessoas doentes se tornam tão fortes. Também é por esse sentimento que eles ficam reativos e exigentes. O sentimento de impotência mediante algo que não temos o menor controle, a insegurança de conversar abertamente sobre o diagnóstico, o medo de não tomar decisões corretas, de não saber cuidar, de não ter tempo de oferecer o cuidado que quem amamos precisa. Isso em outro grau também é adoecimento.

Adoecer pressupõe indiretamente estreitamento de intimidade. Cuidados básicos de banho e troca de fralda são momentos dolorosos para aqueles que não cultivaram uma relação próxima durante a vida. Ninguém está confortável nesse momento, embora não se fale sobre isso. Despir-se diante de outros ou despir quem cuidamos, nos coloca numa situação de vulnerabilidade na qual não sabemos como reagir e, juntos, temos que buscar construir um lugar seguro, adaptável, onde prevaleça o respeito, a dignidade e a autonomia principalmente de quem é cuidado. 

Dito tudo isso, é fato perceber que a vida é impermanência. Podemos planejar e não ir, esperar e ter que adiar, querer e não ter condições. Viva a vida possível. Viva o hoje e não espere dar gargalhada até a barriga doer lá no futuro na sua casa de praia hipotética.  Se permita ser feliz no agora, largue a pia cheia de louça e vai caminhar na praia, se hoje isso te fizer bem, arrume a mesa para uma refeição mesmo que você vá comer sozinho, dando a importância que você merece.  Saia com amigos sem hora pra voltar. Abrace muito quem você ama! Construa boas relações, pois elas serão sua ponte de retorno a você mesmo quando quiserem anular sua história a partir de um diagnóstico. A doença pode bater à sua porta, ela não tem hora e nem se importa se você quer ou não abrir. Mas será muito mais fácil se ao entrar ela encontrar uma casa arrumada, com mais vivências e menos planos. Isso será remédio em dias não tão bons. 

Não percamos de vista, nunca, quem somos. Lembremos do que nos tira sorriso fácil, do que importa, qual a origem do nosso primeiro amor.  Cura pode não ter nada a ver com diagnóstico. Existem pessoas que estão doentes, do ponto de vista médico, mas são extremamente saudáveis a partir da forma que resolveram olhar e levar a vida. 

 Dias bons e ruins passam! (Sempre)

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