Cuida

Os desafios na busca pela melhora da saúde mental da população trans

Por Eugênio Donadia

É chover no molhado dizer que a vulnerabilidade (em todos os seus contextos) vivenciada pelas pessoas trans e travestis causa danos e cicatrizes emocionais marcantes na vida dessa população.  Um estudo realizado nos Estados Unidos, por exemplo, evidenciou que as taxas de tentativas de suicídio nesse grupo chegam a ser nove vezes maiores do que no cisgênero.

Para entender os pormenores que influenciam de modo saudável ou não a saúde mental das pessoas trans, é preciso se aprofundar em questões que, para boa parte da população cis-heterenormativa, passam despercebidas – justamente por serem socialmente aceitáveis e fluidas. Falamos aqui de fatores como: dificuldades no convívio familiar, entrada no mercado de trabalho, educação, estabilidade financeira, segurança e amparo, receptividade em serviços de saúde, acesso aos Diretos da Personalidade, questões de autoimagem e autoestima, e por aí vai. 

A família tende a ser uma das principais queixas dessa população, que muitas vezes vai encontrar em seus pares sua força e constrói suas relações de amizades longe dos parentes. O preconceito, julgamento e não aceitação dessa população não corrobora a formação de uma rede de amparo em locais e momentos primordiais à estruturação da autonomia e estabilidade emocional dessas pessoas. Sensações imprescindíveis para o nosso bem-estar, como o acolhimento, pertencimento, aceitação, encorajamento, dão lugar a temores, ansiedades, sentimentos de solidão e isolamento. 

(É claro, nem todas as famílias rejeitam seus familiares trans e é notório o quanto é positivo esse cenário de suporte na vida dessas pessoas). 

Hoje o Brasil é o país que mais mata trans e travestis no mundo, e esse dado vem sendo debatido de modo constante recentemente. Estamos falando de uma população em que a expectativa de vida é de 35 anos, e viver se torna literalmente resistir. Sair na rua e mostrar o rosto é um ato político de força e voz. O que, por sua vez, torna muitas vivências pesadas e cansativas, com cargas (para mim, cisgênero e branco) inimagináveis de ansiedade, medo e incertezas. Hoje mesmo, enquanto escrevo esse texto, viraliza nas redes sociais a notícia da violência a 3 mulheres trans por um grupo de mais de 15 homens cis.

A transfobia, a solidão/abandono de familiares, as mais diversas dificuldades para se firmar enquanto sujeito na vida – desde a falta de acesso e recursos financeiros para um processo de hormonização rápido, até as burocracias muitas vezes encontradas para a retificação do prenome social e de gênero – corroboram a inflamação de quadros depressivos/ansiosos, abuso de substâncias lícitas e ilícitas e de tentativas e/ou mortes por suicídio.

A psicóloga Jaqueline Gomes de Jesus (mulher trans), em entrevista para Agência Brasil, reforça o quanto conscientizar sobre as questões da transfobia é importante, mas que não podemos nos ater apenas a tais fatos, é preciso ir além, dando visibilidade para a população trans em suas infinitas pluralidades. Reduzir ao terror experienciado (que é real) e reproduzir só esse recorte acaba fomentando o medo, a ansiedade, a suicidabilidade. É necessário criar novas formas para se enxergar a potência dessa população – o que acarretará impactos diretos na saúde mental.  

É sobre discutir e criar a acessibilidade e a inclusão da população nos mais diversos espaços da sociedade, não apenas como usuária, mas como agente, profissional, ser ativo. Onde e como estão as pessoas transgêneros na política, saúde, educação, justiça, comunicação? Nós sabemos o quanto esses espaços podem ser aversivos para essas pessoas (uma vez que estão despreparados para recebê-las enquanto usuárias), então precisamos refletir e propiciar discussões que insiram essa população em todas as mais diversas pontas, de modo a cada vez mais suas presenças serem vistas e naturalizadas.

É notória a dificuldade que muitas mulheres e homens trans têm para conseguir empregos formais e, com isso, ter sua estabilidade financeira, uma vez que o apoio familiar pode vir a faltar. A estabilidade financeira é uma via importante para a realização de sonhos, da melhora da qualidade de vida e da relação consigo mesmo. Hoje, um tratamento hormonal, por exemplo, em muitos lugares é oneroso e de difícil acesso (embora seja disponibilizado pelo SUS). Assim, com o intuito de criar um espaço a fim de facilitar a divulgação e seleção de currículos de pessoas trans, algumas mulheres trans criaram o site https://www.transempregos.com.br/ por em 2013. Trata-se de uma rede que vem, desde então, oferecendo oportunidade de empregos formais a essa população. 

Durante 28 anos, a transexualidade foi considerada uma doença, um transtorno mental pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Só em 2019, oficializada até 2022, é que esse cenário se alterou. Esse dado nos indica a ponta do iceberg que a população precisa descongelar. É necessário desconstruir toda uma história social, cultural, religiosa e política de preconceitos, violência e aniquilação. É preciso refletir, mas para além, é urgente agir e incluir. Quantos amigos/as transsexuais temos em nossas redes de convívios? Quantos colegas de trabalho? Empregados/as? Psicólogos/as, advogados/as, médicos/as que consulto? Por que quem escreve esse texto é um psicólogo cis?

E aí? O quanto estou disponível para mudar essa realidade? 

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