Por Carol Sarmento
Em março, fez 4 anos que vivi a última semana da vida normal que eu tinha. Há 4 anos, e sei que você lembra disso, veio a pandemia que levou gente embora, mudou pessoas e dinâmicas da vida moderna, acelerou o desenvolvimento de coisas medtech, ampliou diferenças que já existiam, proveu colaborações, mas não suficientes para melhorar a vida de muita gente. Trouxe perdas, lutos, recomeços, dores, exercícios de resiliência e empatia, laços e ranços. Tudo mudou, e nada mais é como antes.
Ontem, durante uma conversa com meu marido, e eu, que acreditava ainda ser a mesma pessoa de antes do apocalipse, me vi diante do espelho que me escancarou uma verdade: eu não sou mais a mesma Carol de antes da pandemia. Eu, que vivi meu inferno pessoal durante o período, achei que tinha voltado à minha forma, por assim dizer, e estava de volta às minhas habilidades, meus traços, meus gostos, meu estilo e minhas ferramentas, descobri: não, garota, você não é a mesma. E entendi que, de fato, não voltarei a sê-lo.
Sou médica intensivista e paliativista e trabalhei tanto nesses três anos quanto imagino que precisaria do dobro ou mais de tempo para comportar, de maneira humana razoável, a carga de estresse e horas do período. Vi tanta gente adoecer e morrer, tantas despedidas, tantas ausências, tantas dores e tanto sofrimento que tenho traumas.
Vez ou outra, encontro profissionais que estiveram comigo nos setores onde trabalhei e eles comentam sobre sentimentos bacanas de gratidão, crescimento pessoal e aprendizado que surgiram depois do que passamos. Vez ou outra, ouço “Carol, como aprendi com as nossas discussões de caso! Aprendi tanto sobre ventilação mecânica, terapia intensiva… Foram tempos bons!”, ao que replico de pronto “eu passo mal só de lembrar”. E isso não é no sentido figurado: sinto náuseas, cólica, dor de cabeça, dor de barriga, frio na espinha, arrepios na pele e na alma. Só de lembrar.
Na pandemia, aprendi que a medicina intensiva é uma das especialidades que mais sofre processos médicos, e não fiquei isenta da estatística. Diante do pesadelo que vivemos naqueles dias, da escassez, das urgências e das perdas, cuidamos de milhares de pessoas com o que dispúnhamos. E por mais que eu tenha minha consciência em paz com a certeza de ter feito o melhor possível no meio do transtorno que a gente vivia dentro dos hospitais, quem exerce a medicina está sujeito sim a ganhar um processo no seu histórico de vida. Mas te garanto: na minha cabeça, minha honra e minhas habilidades vivem sob constante questionamento e escrutínio. Todo dia. E sofro muito por isso.
Eu adoeci. Ganhei um CID F para chamar de meu. Experimentei o burnout. Quebrei no corpo, na mente e no espírito. Precisei parar, rever minhas prioridades, me colocar nas mãos de gente que poderia me cuidar, construir novos vínculos e reinventar modelos que permitissem que não adoecesse. Tive que entender meus limites e aprender a descansar.
Eu perdi muito da minha leveza. Sonhei por muito tempo com um dos momentos que idealizei como um dos mais felizes: a festa de celebração da minha união com meu marido, que foi adiada por causa da pandemia. Não escrevo esse relato para fazer a mimada, não é meu estilo, e eu sei bem o porquê desse baladão não ter acontecido: mas, confesso, me foi triste sonhar e não realizar. Sim, eu idealizei. E acho que tem um luto aí nisso, sabe? Inclusive, hoje, sou uma pessoa que sonha pouco, quase nada. Acho que fiquei traumatizada por ter testemunhado tantos sonhos, tantos planos, tanta vida para se viver e não se realizarem. Não falo por mim e por uma festa de casamento, falo por tantos que se foram.
Sinceramente, diante de tudo que ocorreu, luto diariamente para vencer as limitações que ganhei: minha concentração, minha credibilidade em mim, minha capacidade de acreditar nas pessoas e que as coisas podem ser melhores, minha tolerância e minha paciência que se tornaram voláteis e fugazes. Exulto em informar que tenho tido pequenas vitórias nas coisas do dia a dia. E celebro isso! Todas as vezes que consigo exercer o autocuidado, que cumpro meu programa de atividade física, que me alimento de maneira saudável e ajo de maneira coerente com aquilo que ensino às pessoas, que descanso, que durmo bem, que crio, que escrevo, que produzo, que recupero minha crença nas pessoas, que vejo atitudes e escolhas com propósito na minha lida: eu comemoro.
Uma das coisas positivas que aprendi com todo esse turbilhão foi que, felizmente, me tornei mais apaixonada em cuidar. Eu vivo e acredito que o cuidado é capaz de mudar a gente e o mundo (mas primeiro a gente!) e é isso que me move. Especialmente nos dias ruins.