Cuida

Sobre comunicação, canoa havaiana e azeite

Por Alyssa Miranda

A gente começou um dia a se comunicar devido à necessidade de se expressar. Se entender e entender o outro. Comunicar é evoluir. E a humanidade, ao se comunicar por meio de gestos, sons, desenhos, escrita, pôde se desenvolver.

Sou praticante de Canoa Havaiana e, de acordo com a cultura polinésia, a canoa não é apenas um barco. Ela faz parte da história do seu povo, imbuída de suas lutas e triunfos. O terreno difícil e pedregoso do Havaí impossibilitava a travessia a pé e as canoas transportavam pessoas e materiais de um lado a outro da ilha, além de serem usadas para pesca e guerra.

E para se fazer uma canoa, os construtores da canoa escolhiam uma árvore ainda pequena. E passavam anos reverenciando-a até que recebiam um sinal da natureza e, da sabedoria ancestral, mais uma canoa era construída. Esta é razão pela qual a canoa é um ícone sagrado e respeitado. E assim segue até os dias de hoje.

Recentemente pude competir o campeonato Brasileiro de Canoa Havaiana. Durante todo o percurso de 12 km, pensei sobre comunicação. A canoa era meu paciente. Era ele o centro de tudo. Um movimento errado e ele seria afetado. Nós, os remadores, éramos a equipe multidisciplinar. E o mar a doença. É importante que a gente que está remando se entenda, em um balanço perfeito entre encaixar nossas remadas, afundá-las na água quando queremos atingir altas velocidades e diminuir a pressão quando sentimos que a canoa não está conseguindo acompanhar o ritmo da maré. Além disso, para que o velejo seja perfeito, cada membro da equipe deve se escutar – e muitas vezes escutar não significa ouvir, e sim sentir. A linguagem importa, mas nem sempre ela precisa ser dita. Ela precisa, na verdade, é ser compreendida. Em uma competição, assim como no curso de uma doença, se não existe compreensão e escuta entre equipes e, entre equipes e pacientes, as remadas perdem a sua função principal que é a de fazer com que a canoa siga em frente.

Dia desses, uma paciente chegou ao meu consultório abatida após longo percurso até o seu diagnóstico: um sarcoma de partes moles de membro inferior esquerdo. Estava cansada pois já havia 6 meses que crescia um nódulo na panturrilha esquerda e nenhum médico se importava em saber o que era. Trombose? Lipoma? Câncer? Nem podia falar essa palavra.

Quando abro o laudo da tomografia de tórax me deparo com a palavra “metástase”. Sim, era um sarcoma metastático para o pulmão. Começamos rapidamente a quimioterapia. Feito apenas um ciclo e a paciente evoluiu com pneumotórax espontâneo bilateral por imensa resposta à quimioterapia. Após longo período de internação, ela retorna ao consultório. Chega animada: “Dra., quando começamos de novo?”. Nesse momento eu sentei bem ao seu lado e disse: “você respondeu super bem à quimioterapia, mas quase morreu por causa dela. Não vejo sentido em fazer um tratamento assim. Vamos reduzir a dose, vamos retirar alguns medicamentos e fazer um tratamento com droga única. Pode ser que você responda menos, mas quero você bem durante o tratamento”. E ela sabiamente me respondeu: “Dra., os melhores azeites vem da azeitona. Difícil é ser a azeitona. Por mais desafiador que seja, eu estou amando o processo de me transformar em azeite”.

Segundo Karnal, “comunicar-se com alguém é um exercício que melhora quem ouve e melhora quem fala”. Entendi que remar a canoa é leve e fluído quando ouvimos e entendemos a direção que aquela canoa quer seguir no mar. Quando os remadores, juntos, ensaiam o balanço da remada, o percurso a ser seguido e se preparam também para o momento de parar de remar e deixar a canoa seguir o seu curso natural. Independente se a maré é forte e contra e se o vento sopra agitado, todo mar tem seu fluxo e toda canoa, guiada por seus remadores, um dia vai sumir no deslizar das águas até a imensidão do oceano.

, ,